Transpareço pelas esquinas e ruas como uma nuvem flutuante, ou um cão dono da própria vida que é atraído pelo cheiro da comida, a abelha conectada pelo néctar das flores a sugar vida. A cidade velha me atrai. Faz mergulhar nas histórias. Em outros instantes me afoga nas vivências de anos partidos. Ela me agarra na revisita das marcas visíveis e conceituais das suas paredes e monumentos.
O passar por cada dobra de rua garante reencontros. Estão nos santos parados a séculos em imagens de pedra e barro em recantos de igrejas que miram cada (in)fiel que atravessa a vida da cidade velha. Também se movem pelos túneis e viadutos que ligam à Descida da Padre Meira e é caminho à Praça Antenor Navarro em céleres borrões motorizados e apressados que se trocam com os anos.
Imagino viajar por outros olhos nos velhos bondes que custavam cem réis gritados no ponto que virou marco. Os trilhos hoje jazem sepultados pelo asfalto. E sigo as carroças puxadas por cavalos e burricos pelas ladeiras da Borborema e de São Francisco. Vejo os negros escravizados suarem carregando o fardo do mundo às suas costas. O sofrimento molda a história e está do lado das flores.
Escuto os gritos de agitação das tropas em revoltas. Em marchas dos meses que balizaram 1817 em sonhos republicanos rendidos no Mosteiro de São Bento. E ainda os tumultos pelo tiro disparado em outro estado nos idos de 1930.
Da Casa da Pólvora aprecio a vista, mas sei que ali se portavam canhões vigilantes de olho no rio, estrada para o mundo e tantos invasores. O golpe das naus inimigas subia pelas águas do velho Parahyba.
Ladeira São Francisco / Casa da Pólvora (PB) CC0
Ouço o pulsar da fala nos discursos políticos de eleições e rebeldias em praça pública. De estudantes e heróis, de políticos e agitadores quando ainda era o Largo do Colégio, a Comendador Felizardo e da Praça Felizardo Leite. As palavras ainda ecoam pelos cantos, antes de serem construídos os plenários das casas legislativas, quando por ali havia um belo prédio antes de ser ruído, a sede do Jornal A União.
Revejo as escandalosas casas de perdição das Rua Maciel Pinheiro e da Rua da Areia. Luzes baixas, fumaça de cigarros, andar de boêmios, âncoras de perdidos. Garrafas sob mesas se acumulam e a dignidade não entra ou é gritada no redemoinho da calmaria das horas das madrugadas. E passo por corpos em descanso de ontem e de hoje em portas baixadas de lojas, (des)protegidos sob marquises.
Piso o chão desnivelado pelo tempo de calçadas e ruas da cidade, onde passaram pé calçados de muitas emoções e desnudos de liberdade, construído com barro, cimento e sangue, por onde foram escritas páginas publicadas e outras tantas transformada em poeira pelas traças da própria memória enevoada. Pisos são repostos sobre pavimentos anteriores, compactando esquecimentos, como imagens esquecidas após o se virar uma esquina.