De um dos bacharéis em questão adviria o paraibano Abelardo Jurema conhecido no Brasil inteiro como ministro da Justiça do presidente João Goulart. A origem da família tem estreita vinculação com as lutas de 1817, das quais participou, contra Portugal, o português José de Brito Meneses, bisavô de Abelardo.
Com a derrota dos revolucionários, José Meneses foi preso na Ilha das Cobras, onde muito apanhou. Saiu da prisão, tempo depois, com um ódio mortal aos da própria raça. E, assim, decidiu jogar fora o nome de batismo. Consultado sobre a possibilidade da mudança, o juiz quis saber como o queixoso pretendia doravante ser chamado. Resposta: “Por um nome da terra”. Pensativo, o magistrado foi à janela, olhou a paisagem e sugeriu: “Que tal pelo nome daquela plantinha?”. A partir daí, o que era Meneses virava Jurema.
No início de agosto de 1990, ouvi essa história de um Abelardo já próximo dos 76 anos de vida. Eu o entrevistava para a finada Revista A CARTA, do editor Josélio Gondim. Inteligente, extrovertido, dono de uma verve legendária, meu entrevistado fazia-me antever, aos primeiros minutos, o bom rendimento da nossa conversa. Não parecia haver dúvida: o homem herdara do ancestral português a irreverência, a natureza buliçosa e a sorte para as encrencas.
Amante das noites, do bom copo, do bom prato e das boas companhias, ele dispunha, além disso, de atributos que o punham a anos luz das ações e do perfil de um comunista, habitualmente traçado. Mas foi com tal rótulo que se viu forçado ao exílio no Peru, no nefasto 1964. Antes disso, na fase estudantil, pegara 45 dias de cadeia quando militava na Aliança Nacional Liberal.
Foram temas da nossa conversa as esquerdas brasileiras, os tempos de Câmara e Senado, os dias de Ministério e o espírito pacífico de João Goulart. Contou-me Abelardo que, com o golpe de 64 em marcha, foi procurado pelo brigadeiro Moreira Lima interessado no sinal verde do presidente para jogar 50 aviões bem armados contra as tropas de Mourão Filho – então comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora – que desciam de Minas rumo ao Rio de Janeiro. Argumentava o brigadeiro: “Garanto que durante dez anos ainda correrão soldados pelas estradas do Brasil”. Resposta de Jango: “Por esse preço não quero ficar no poder”.
Abelardo não se queixou do exílio. “Aprendi a viver fora da atividade pública e ganhei meus dólares vendendo cigarros e charutos no Peru”, disse-me. De certo modo, retomava uma experiência antiga, posto que havia gerenciado uma fábrica de cigarros mal ingressara, em Recife, na Faculdade de Direito. A capital peruana teve nele o representante da Dannermann e da Suerdick.
Às 10 da noite, já recolhido, ouviu batidas na sua porta, em Lima. Era Jânio Quadros: “Vim visitar um ministro do meu país que, para sobreviver, vende charutos”. Em seguida, ouviu a pergunta: “Já tens dinheiro para uísque?”. O que Abelardo tinha em casa era pisco, uma bebida local. E Jânio: “Serve. Traz uma bem geladinha”.
Sua nomeação para o Ministério da Justiça apenas deu-se quando veio o presidencialismo. Ou seja, não pôde ser feita por João Goulart quando ainda vigia o sistema parlamentarista no País. “Lamentei não ter podido indicá-lo, à primeira hora, um dos meus ministros, porque nesse parlamentarismo os ministros têm que carregar consigo grande número de parlamentares. Você é de uma bancada pequena, a da Paraíba, que só tem dez pessoas e todas brigadas entre si”, disse-lhe Jango. Na ocasião, Abelardo estava recuperado de uma cirurgia de hemorroidas. Dias depois, seu amigo João Olivetto, sofredor do mesmo mal e temeroso do mau resultado da operação, era por ele tranquilizado: “Não se preocupe João. Você vai sair não apenas curado, mas, também, ministro da República”. Foi, exatamente, o que aconteceu.
Perguntei-lhe: “O comunismo se implantaria no Brasil sem o golpe de 64?”. E dele ouvi: “Não. Jango não era comunista. O que o derrubou foi a oposição dos três maiores Estados brasileiros e isto ninguém diz. Havia a oposição de Magalhães Pinto, da UDN autêntica de Minas. Era Adhemar de Barros, em São Paulo, querendo a Presidência. E havia, também, no Rio de Janeiro, Carlos Lacerda. O Rio era a caixa de ressonância da opinião pública nacional enquanto São Paulo e Minas pesavam pela importância econômica. O presidente não dominaria a situação sem sangue”.
Eu não poderia encerrar a entrevista sem essa pergunta: “O senhor não faz segredo de que se ressente da perda do poder. Que coisas daquele tempo mais lhe fazem falta?”.
Resposta: “Ainda recentemente, eu estava almoçando na casa do ex-ministro Expedito Machado, quando a mulher dele, uma senhora muito simpática, comentava que o marido não guardava saudade do Ministério. E me perguntou se eu guardava. Respondi que guardo, sim, profundamente, pois quando ministro nunca abri ou fechei portas nem paguei conta pois sempre havia quem sacasse o talão de cheques antes de mim”. Como eram saborosas as conversas com Abelardo.