Não é qualquer um que tem amigos há mais de meio século. Amigos de verdade, digo, e não meros conhecidos de ocasião, de conveniência, ...

Cleanto Gomes Pereira, meu amigo setentão

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Não é qualquer um que tem amigos há mais de meio século. Amigos de verdade, digo, e não meros conhecidos de ocasião, de conveniência, de mesa de bar ou de chapéu, como diria Machado de Assis. Amigos para o que der e vier, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, semelhante a um casamento feliz e longevo. Amigos, uma meia dúzia, no máximo, feitos ao acaso (ou não), ao puro sabor das circunstâncias, e que jamais poderiam prever a rara longevidade da amizade, esse tesouro que ilumina nossas vidas, não raro mais que os próprios parentes de cada um.

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MS
Pois Deus me concedeu esse privilégio, essa bênção que carinhosamente guardo e cultivo no lado esquerdo do peito, como diz a canção. Concedeu-me, diga-se logo, não por merecimento meu, que não o tenho, mas por pura e generosa gratuidade, mistério da divindade que não busco decifrar, porque mistério é mistério – e ponto final. Cito-os expressamente para homenageá-los nesta hora em que todos chegamos – ou estamos prestes a chegar – a essa emblemática marca dos setenta anos. Emblemática e decisiva, pois a partir de agora, mais do que antes, tudo é imprevisível, menos a comum finitude, cada vez mais finita daqui por diante, na ordem natural das coisas neste mundo efêmero. Everaldo, Hélvio, Ednardo, Deoclécio, Hildeberto e, naturalmente, Cleanto, nosso hipocondríaco profissional e de estimação, sempre inventando males imaginários, mas sem nunca deixar de brindar a Baco e à alegria de viver. Não tivessem se apressado e partido tão cedo, Nilsinho e Fernando também fariam parte dessa curta e valiosa lista amical.

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Cleanto Gomes Pereira
Acervo pessoal
Conheci Cleanto ainda no velho Liceu Paraibano, início dos saudosos anos 1970. Não estudávamos na mesma sala, mas participamos de uma certa excursão turística a Natal, e o acaso (será?) nos juntou no mesmo banco do ônibus. E aí teve início uma conversa fraterna que dura até hoje, lá se vão mais de cinco décadas. Uma conversa tão amiga e tão reveladora de nossa recíproca comunhão que não raro até dispensa as palavras, já que, mesmo imersos num eventual silêncio, nos entendemos. E o tema dessa já longínqua conversa inaugural não foi outro senão a literatura, as parcas letras que já amávamos e cultivávamos ingenuamente, é certo, mas com a intensidade própria das paixões juvenis, paixões estas que costumam se inscrever para sempre em nossas almas em flor, e nunca mais se repetir. Logo depois, ao ingressarmos na Universidade, iríamos os dois conhecer o brilhante Hildeberto Barbosa Filho, terceiro mosqueteiro, mais fiel às musas que qualquer um de nós.

E assim, sempre unidos, sempre admiradores uns dos outros, sempre nos incentivando mutuamente, vimos seguindo pelo tempo afora. Acompanhamo-nos os primeiros amores, as primeiras conquistas profissionais, os primeiros cabelos brancos e as primeiras rugas. E também as dificuldades, obviamente. Espelhos uns dos outros, como disse Santo Agostinho, seguimos em cada face o desenrolar da existência, até chegarmos neste cume dos setenta anos, pleno de simbolismos e de dúbios presságios. Assistimos ao nascer dos filhos e dos netos de cada um, e, se nos for concedido, ainda ansiamos ver a descendência que há de vir destes últimos.

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Osias Gomes A União
Tive a ventura de, através de Cleanto, conhecer um pouco mais de perto um dos grandes paraibanos de todos os tempos, seu avô Osias Nacre Gomes, ídolo e inspiração do neto. Na aprazível casa da avenida Dom Pedro I, adentrei o escritório ainda ativo do jurista e escritor de escol, então começando a avistar o crepúsculo incontornável, para folhear os incontáveis volumes de sua biblioteca. Sem falar nas lições que dele eventualmente colhia, quando, sempre acessível, se dispunha a conversar com os dois fedelhos. E no terraço da casa da avenida Camilo de Holanda, quantas conversas tivemos, quantas ideias e confidências trocamos. Um comércio afetivo permanente, sem máculas nem atritos.

Diz-se que “um irmão é um amigo dado pela natureza”. Mas nem sempre um irmão é um amigo, sabemos. Agora, dizer que “um amigo é um irmão que a gente se dá”, como faz o filósofo francês André Comte-Sponville, está mais próximo da verdade. Todavia, prefiro pensar que o amigo verdadeiro é um presente de Deus, para realçar a grandeza da amizade genuína. Um presente de Deus para nos ajudar a carregar o fardo da vida. Por isso, toda amizade é cirenaica – ou deveria ser. Como a minha e de Cleanto. Aristóteles chega ao extremo de afirmar que “sem amigos ninguém optaria por viver”. E de fato é assim: quão vazia e cinzenta é uma vida sem amigos. De amigos verdadeiros e testados, obviamente.

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André Comte-Sponville
@fronteiras.com
Diferentemente de Eros (amor), a Philía (amizade) exige reciprocidade. Continua Sponville: “Podemos amar quem não nos ama, são os tormentos do amor, mas não podemos ser inteiramente amigos de quem não acreditamos ser nosso amigo”. Pura verdade. E é essa necessária reciprocidade que alimenta e realimenta a amizade, fazendo com que ela sobreviva a todos os percalços e se estenda no tempo mais do que muitos amores eróticos.

Em nossa contabilidade afetiva, minha e de Cleanto, não há credor nem devedor. Não há nenhuma sombra de interesses subalternos ou mundanos. Não há inveja nem competição. A alegria e o sucesso de um são plenamente compartilhados pelo outro, sem nenhum ranço. E a solidariedade sempre se faz presente quando necessária. Assim tem sido, assim há de continuar sendo.

Meu velho amigo subiu a montanha até aqui com o manto da decência e da dignidade, herança paterna e avoenga. Que este manto continue lhe cobrindo os ombros já um pouco encurvados na inevitável descida que se inicia. E que o descer seja lento e saudável, para que usufruamos ambos, por muito tempo ainda, da ventura de chamarmos um ao outro por este belo e raríssimo epíteto: amigo-irmão.

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