Na capa do livro, logo abaixo do título, está escrita em letras pequenas mas perfeitamente visíveis a palavra ficção. Vejam bem. Não se optou por romance, novela ou memórias, mas por... ficção. E no entanto não é bem assim. Que há ficção, há, mas também, e talvez em maior parte, há memórias, ou seja, autobiografia pura e simples. Mas de tal modo bem misturadas, ficção e verdade, que o leitor tem dificuldade de distingui-las se não se mantiver atento. A palavra ficção serve de alerta e de advertência para o leitor. É certamente uma estratégia do autor, Chico Buarque, para se resguardar enquanto tal, como quem diz: eu avisei.
Chico Buarque Palácio do Planalto
Mas voltemos a Mister Welsh, aquele que passava a mão na bunda do menino Francisco, ou Francesco, como o chamavam seus colegas de escola, a maioria estrangeiros como ele. Era um irlandês o mestre mão-boba da Notre Dame International School, em Roma. O bambino tinha nove anos e a princípio pensou que aquele estranho alisado era um cacoete do professor; só depois, espontaneamente, a ficha caiu e ele tratou de se afastar. Começou a matar as aulas de inglês, indo brincar no jardim com um colega japonês. E o interessante é que Mister Welsh aceitou, compreendendo-o, aquele súbito afastamento do aluno brasileiro e não procurou forçar a barra. Será isto um atenuante a seu favor?
Mais adiante, ainda no capítulo 2, o autor escreve: “Essa minha história com ele eu não cogitava contar a ninguém, tinha pudor. Eu tinha medo de pegar fama de bicha, mas agora já me disponho a incluir o caso num eventual livro de memórias. Com passagens assim picantes, é possível que o livro seja publicado com sucesso, quem sabe até traduzido
Louvre
No capítulo 15, o autor/narrador ao falar do papel de parede junto à sua cama na casa paterna, que imitava um muro de tijolos, e que cobria uma parede de tijolos verdadeiros, revela o seguinte:
“Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde.”
MS
“Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido.”
Eis aí a promessa de casamento de memória e ficção que atravessa o livro, deliberadamente ou não.
Uma importante personagem do livro que o autor não negligenciou é a bicicleta niquelada de pneus brancos com que o bambino aparece na capa. Essa inesquecível bicicleta, presente de seu pai, quase mítica, conduziu o curioso e alvorecente brasiliano em suas explorações das ruas e vielas romanas, e agora certamente o ajudou a percorrer os caminhos da memória crepuscular. Essa bicicleta, tão companheira, o menino recusou-se a trocar por um violão para aprender as primeiras notas musicais com sua irmã mais velha. Naquele momento, desistia da música, sem saber que a ela retornaria anos depois, não como um aprendiz, mas como um mestre.
Chico Buarque aos 10 anos (Roma) Instituto Antônio Carlos Jobim
Muitas vezes o autor retornará à capital italiana, inclusive durante a ditadura brasileira pós-1964. Lá, com razão, sempre se sente em casa, apesar, segundo dizem, de ter comprado apartamento em Paris. Compreendo: ninguém é de ferro e Paris é Paris. Mas Roma é cidade que não se esquece. Assim como também não é possível esquecer um Mister Welsh da vida. Um Mister Welsh safado que alisa - impune - a lisa bunda de inocentes bambinos.