Na capa do livro, logo abaixo do título, está escrita em letras pequenas mas perfeitamente visíveis a palavra ficção. Vejam bem. N...

Mister Welsh e o 'bambino'

chico buarque bambino roma
Na capa do livro, logo abaixo do título, está escrita em letras pequenas mas perfeitamente visíveis a palavra ficção. Vejam bem. Não se optou por romance, novela ou memórias, mas por... ficção. E no entanto não é bem assim. Que há ficção, há, mas também, e talvez em maior parte, há memórias, ou seja, autobiografia pura e simples. Mas de tal modo bem misturadas, ficção e verdade, que o leitor tem dificuldade de distingui-las se não se mantiver atento. A palavra ficção serve de alerta e de advertência para o leitor. É certamente uma estratégia do autor, Chico Buarque, para se resguardar enquanto tal, como quem diz: eu avisei.

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Chico Buarque Palácio do Planalto
Memória ou ficção, ou ambos, o certo é que o autor está lá, narrador e personagem, centro inescapável do livro. E lá estão o bambino e a escola de elite em que estudou. E lá está também Mister Welsh, que passou a mão na bunda do bambino. Mais de uma vez, frise-se. Até que o garoto desconfiou que aquilo não era correto e, dentro do possível, se afastou do professor pedófilo. Já oitentão, o autor decidiu agora narrar essa história, seja ela memória, seja ela ficção. Mas de fato ele, criança, viveu e estudou em Roma nos idos de 1953 e 1954, período em que seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, lá trabalhou.

Mas voltemos a Mister Welsh, aquele que passava a mão na bunda do menino Francisco, ou Francesco, como o chamavam seus colegas de escola, a maioria estrangeiros como ele. Era um irlandês o mestre mão-boba da Notre Dame International School, em Roma. O bambino tinha nove anos e a princípio pensou que aquele estranho alisado era um cacoete do professor; só depois, espontaneamente, a ficha caiu e ele tratou de se afastar. Começou a matar as aulas de inglês, indo brincar no jardim com um colega japonês. E o interessante é que Mister Welsh aceitou, compreendendo-o, aquele súbito afastamento do aluno brasileiro e não procurou forçar a barra. Será isto um atenuante a seu favor?

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Tudo isto está contado no capítulo 2 de Bambino a Roma (Companhia das Letras, São Paulo, 2024), livro mais recente de Chico Buarque, ganhador do Prêmio Camões de 2019. Ficção ou memória? Acredito mais na segunda hipótese. Pois se trata de um tema muito sensível, que dá margem a muitas especulações, não havendo razão, à primeira vista, para que o autor inventasse esse capítulo, sem o qual a obra poderia perfeitamente seguir em frente. Salvo se pretendia, através da ficção, chamar a atenção dos leitores para uma das graves questões de nosso tempo, que é justamente o assédio sexual, no caso, a crianças. O fato é que, autobiográfica ou não, a narrada experiência do bambino com seu professor irlandês tem muito de universal, além de ser um dos trechos mais impactantes do livro.

Mais adiante, ainda no capítulo 2, o autor escreve: “Essa minha história com ele eu não cogitava contar a ninguém, tinha pudor. Eu tinha medo de pegar fama de bicha, mas agora já me disponho a incluir o caso num eventual livro de memórias. Com passagens assim picantes, é possível que o livro seja publicado com sucesso, quem sabe até traduzido
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Louvre
para o inglês. Só acho uma lástima que, a essa altura, mister Welsh com certeza já terá morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão.”. Ou isto explica a veracidade do assédio como fato da realidade que aconteceu e a demora na sua divulgação, ou, se ficção, cumpre muito bem a missão de levar o leitor a confundir a fantasia com o real, mostrando o talento criativo do escritor. Pessoalmente, inclino-me a ter a narrativa do capítulo 2 como memória e não como criação ficcional; admito, entretanto, a possibilidade de estar enganado, como pode parecer a alguns, já que aquela palavrinha da capa do livro, ficção, é sempre fonte inesgotável de muitos equívocos.

No capítulo 15, o autor/narrador ao falar do papel de parede junto à sua cama na casa paterna, que imitava um muro de tijolos, e que cobria uma parede de tijolos verdadeiros, revela o seguinte:

“Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele ao mesmo tempo esconde.”
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MS
Será esta a chave hermenêutica do seu livro afinal publicado? É possível. E essa chave, sabemos, serve para decifrar muita literatura, não é mesmo? Neste mesmo capítulo, outra declaração importante:

“Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido.”

Eis aí a promessa de casamento de memória e ficção que atravessa o livro, deliberadamente ou não.

Uma importante personagem do livro que o autor não negligenciou é a bicicleta niquelada de pneus brancos com que o bambino aparece na capa. Essa inesquecível bicicleta, presente de seu pai, quase mítica, conduziu o curioso e alvorecente brasiliano em suas explorações das ruas e vielas romanas, e agora certamente o ajudou a percorrer os caminhos da memória crepuscular. Essa bicicleta, tão companheira, o menino recusou-se a trocar por um violão para aprender as primeiras notas musicais com sua irmã mais velha. Naquele momento, desistia da música, sem saber que a ela retornaria anos depois, não como um aprendiz, mas como um mestre.

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Chico Buarque aos 10 anos (Roma) Instituto Antônio Carlos Jobim
O menino chegou a ver de perto o papa Pio XII nos seus finais acinzentados. Também nas bancas de jornais de Roma a manchete noticiando a morte de Stálin e de Getúlio Vargas. Esta última atraiu para si a consideração de colegas da escola e vizinhos da rua, os quais, antes disso, pareciam desconhecer a existência de um país chamado Brasil. Os pais do bambino não eram getulistas, mas, decentemente, não comemoraram a morte do ex-ditador.

Muitas vezes o autor retornará à capital italiana, inclusive durante a ditadura brasileira pós-1964. Lá, com razão, sempre se sente em casa, apesar, segundo dizem, de ter comprado apartamento em Paris. Compreendo: ninguém é de ferro e Paris é Paris. Mas Roma é cidade que não se esquece. Assim como também não é possível esquecer um Mister Welsh da vida. Um Mister Welsh safado que alisa - impune - a lisa bunda de inocentes bambinos.

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  1. Obrigado, Frutuoso.

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  2. SEVERINO ELIAS SOBRINHO30/9/24 10:45

    Texto muito bom, Dr. Gil. Falo na condição de um leitor comum. A braços.

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  3. Obrigado, Sérgio.

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  4. Obrigado, Elias.

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  5. Obrigado, Lúcia.

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  6. Obrigado, Léo.

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  7. Obrigado, Paiva.

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