Era a época do carrancismo, de muito apego as tradições e aos costumes, do poder pela força. Quando o adulado coronel, barrigudo, mandava no juiz, no delegado e no prefeito. Prendia e mandava soltar. Tempo em que o sentimento de honra aflorava. Qualquer desfeita era tomada como desonra e exigia reparo. Uma filha ofendida dentro de casa era o pior que podia suceder, o maior dos ultrajes. Para sanar a ofensa só havia duas saídas: casamento ou tragédia. Feito o casório, não se falava mais no assunto, botava-se uma pedra em cima; caso se negasse a reparar o mal feito, era morte na certa.
A honra se lavava com sangue. Era a lei do sertão.
Passava pouco da meia noite, a cidade adormecida, quando um grupo de pessoas, pequeno, porém bem armado e decidido, chegou à casa paroquial, conduzindo Manoel Boaventura sob forte ameaça; a moça, cabisbaixa, passos miúdos, mais morta do que viva, caminhava logo atrás.
Depois de rápida confabulação e para não levantar suspeitas, foi ordenado a Gino, o velho sacristão, que acordasse o padre para dar a extrema-unção a um doente que se ultimava.
Assim foi feito.
O caridoso sacerdote, após um dia muito puxado, sonolento, quase caiu para trás, perdeu a voz, ao abrir a porta e se deparar com aquelas armas apontadas ostensivamente em sua direção. Atordoado que estava não ligou coisa com coisa, achou que sua hora havia chegado, e fez um fervoroso sinal da cruz, entregou a alma a Deus.
Com a aflição estampada no rosto do reverendo, o senhor Zezé Miguel, pai da moça ofendida, adiantou-se e falou com firmeza:
⏤ Nada te sucederá, seu vigário, se o senhor fizer o que deve ser feito! Caso contrário, é melhor continuar rezando!
O padre Chico Pereira, conhecedor profundo da natureza humana, e daquele povo em particular, nascido e criado no meio do cangaço, compreendeu que aquela gente não estava blefando, um ato inusitado e gravíssimo como aquele não se pratica à toa, entendeu que qualquer recusa ou má vontade de sua parte, seria catastrófico. O casamento à força, fora dos cânones, teria de ser realizado. Num lampejo, como só acontece com pessoas de inteligência atilada, mesmo em um momento conturbado, encontrou a fórmula correta de satisfazer os agressores, sem macular a sua consciência religiosa.
Naquela época, toda liturgia da igreja católica apostólica romana era oficializada em latim, idioma praticamente desconhecido para a maioria da população. Foi a salvação. Já senhor de si, pediu serenidade aos presentes, e encaminharam-se para a igreja situada a pouca distância da casa paroquial. Lá, na sacristia, paramentou-se, juntou os noivos e deu início a cerimônia de casamento, para a satisfação dos familiares da moça, agora de ânimos pacificados. O logro foi completo. O padre apenas passeava os olhos pela leitura e pronunciava palavras aleatórias, sem nenhuma relação com o texto sagrado. Improvisava. Seguro de que ninguém o entendia, simulou todo a ato. Concluída a cerimônia, o noivo saiu por uma porta e a noiva por outra.
Naturalmente, o casamento não teve nenhuma validade e, tempos depois, após longas e fatigantes demandas, foi anulado pelos tribunais eclesiásticos.