Pode um branco escrever um romance sobre personagens de cor? E pode um ocidental escrever uma história passada no Oriente? Toda vida foi possível — e há mil exemplos —, mas agora parece que não. Agora a coisa não é tão simples, como nada mais parece ser simples, num mundo que, estou certo, ficou mais burro — e desagradável.
Talvez o leitor ainda não tenha ouvido falar em “apropriação cultural”, mas é disso que estamos falando. Esta expressão é recente, filha do “politicamente correto” levado aos seus extremos fanáticos, e significa, em suma, tirar, de alguma forma, proveito da cultura alheia ou, extremo dos extremos, de meras situações e circunstâncias alheias, não pessoalmente vivenciadas pelo(a) suposto(a) aproveitador(a). Nessa linha, por exemplo, um cristão ou um ateu não teria legitimidade para escrever sobre o sofrimento de judeus perseguidos pelo nazismo, já que falta-lhe, óbvio, a prévia condição de judeu. Do mesmo modo, homem não poderia escrever sobre mulher, hétero sobre gay, e vice-versa, e por aí vai. Uma personagem feminina que sofreu estupro só pode ser imaginada e descrita por autora mulher estuprada. Absurdo? Também acho.
O leitor já formou uma ideia inicial da questão e deve estar, imagino, refletindo, pasmo, de boca aberta, sobre as nefastas consequências que essa tal de “apropriação cultural” pode ter para a literatura e para as artes em geral. Cada qual agora em tese só pode escrever sobre o seu próprio umbigo, sobre o seu próprio grupo. Pode?
Que isso é uma forma descarada de censura, não há dúvida. Pois a liberdade não consiste exatamente no direito de quaisquer autores e autoras escrever sobre o que bem quiserem? Naturalmente arcando com a responsabilidade sobre o que escrever, como é de praxe. Ofendeu pessoas, etnias, ideologias, minorias e religiões, por exemplo? Responda, nos termos da lei vigente, se for o caso. É assim que tem funcionado nas democracias. E é assim, penso, que deve continuar, sob pena de reduzirmos a criação literária a praticamente... nada.
Veio-me à lembrança um romance do maranhense Josué Montello situado na Paris ocupada pelos alemães. Para os adeptos da “apropriação cultural”, ele não poderia ter escrito tal obra, já que não viveu a experiência da capital francesa sob os nazistas. Só alguém que viveu aqueles dias sombrios poderia legitimamente fazê-lo. E Machado de Assis, sendo quem foi, poderia ter escrito seus romances ambientados nas burguesia e aristocracia cariocas do século XIX? E, hipoteticamente não podendo, essa burguesia e essa aristocracia por acaso conseguiriam gerar um gênio capaz de traduzi-las literariamente? Olha o problema. Amplie-se o quadro para o mundo inteiro e ter-se-á uma ideia do tamanho do pepino.
E o tal do “leitor sensível”? É uma nova categoria profissional, filha da “apropriação cultural”, cujo ofício consiste em ler, para as editoras, manuscritos que possuam potencial de críticas ou de questionamentos por parte de segmentos da sociedade. Desse modo, se um autor branco escreve sobre um personagem negro, contrata-se um leitor sensível negro para verificar se a representação do personagem está ou não sendo racista, consciente ou inconscientemente. E vice-versa. Vejam só. Se a sensibilidade desse leitor especial detectar uma mera fumaça de preconceito, adeus para o livro, salvo se o autor modificá-lo para atender os “sensíveis”. Será isto a chamada pós-modernidade? Ou esta já ficou para trás e estamos vivendo outra realidade, mais terrível, cujo rótulo desconheço? Será a distopia?
O leitor pode perfeitamente imaginar onde isso tudo irá parar, se é que parará em algum momento. O autopatrulhamento dos autores já é uma realidade há algum tempo. O “politicamente correto” não é de hoje e seus fanáticos seguidores vêm há anos cancelando criadores por quaisquer supostos deslizes, reais ou fictícios. E até retroativamente, como ocorreu com Monteiro Lobato, em lamentável episódio.
Não sei se a “apropriação cultural” é um fenômeno de mão dupla. Ou seja, se vale para todos ou apenas para alguns, o que seria simplesmente odioso. Há muita porra-louquice circulando por aí. Insana porra-louquice fundamentalista.
A se imporem a “apropriação cultural” e o “leitor sensível”, qual o futuro da liberdade criativa dos autores? Qual o futuro da própria literatura, tal como hoje a conhecemos? É uma grave questão, não resta dúvida. Os escritores, as editoras e os demais envolvidos, direta ou indiretamente, devem se mobilizar para enfrentá-la o mais rapidamente possível. Antes que a censura e a escuridão se instalem de vez em pleno século XXI, desapropriando-nos de qualquer possibilidade de uma vida cultural livre e plena.