Não sei por que me lembrei dele ao ler o mais recente livro de Aldo Lopes de Araújo, Memorial do esqueleto e outros contos , Sebo Ver...

Aldo Lopes, Miguel Torga, Graciliano

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Não sei por que me lembrei dele ao ler o mais recente livro de Aldo Lopes de Araújo, Memorial do esqueleto e outros contos, Sebo Vermelho Edições, Natal, 2024. Refiro-me ao poeta e contista português Miguel Torga, tão grande que o nosso Jorge Amado considerava-o merecedor do Nobel, só para se ter uma ideia do valor desse médico taciturno, cujo nome verdadeiro era (e é) Adolfo Correia da Rocha. Nascido em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, viveu, trabalhou e morreu em Coimbra, onde se formou. Entretanto, quando jovem, viveu uns tempos em Leopoldina, Minas Gerais, o que nos remete ao nosso Augusto dos Anjos que lá viveu seus últimos dias como diretor de um colégio. Coincidência? Sabe Deus.

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Miguel Torga Casa-Museu Miguel Torga
Não sei dizer exatamente o que aproxima os dois contistas, o português e o paraibano de Princesa Isabel. Creio que tem a ver com o fato de que Torga em dois de seus livros, Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha situa suas narrativas no Portugal profundo das mais remotas aldeias, aquelas mais rurais que urbanas, ao seu tempo ainda plenamente fiéis aos costumes mais tradicionais – e autênticos – da modesta gente campesina. Um Portugal, diga-se, ainda atrasado e isolado do mundo, como foi até sua entrada na União Europeia, quando teve início sua modernização, seu progresso e sua inserção, de fato e de direito, na Europa desenvolvida.

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São Martinho de Anta Sacavem
É muito possível que na gênese dos contos de Torga estivesse a sua São Martinho de Anta natal, tão pequenina que em 2011 tinha apenas 910 habitantes. Assim como na origem de vários contos de Aldo encontramos a Princesa Isabel (e adjacências) de tempos idos, aquela que se entranhou para sempre em sua memória de homem e de escritor. Em ambos os autores, nos contos de que estou a falar, emergem os personagens quase míticos, as histórias e a cultura campesina dos lugarejos do interior de outrora. Um mundo então ainda preservado, não contaminado pela relativa – e desfiguradora - modernização trazida pelas estradas e principalmente pela televisão. Mas não pense o leitor que estou idealizando esses rincões retratados literariamente por Torga e por Aldo Lopes. Sei perfeitamente que podiam ser autênticos e talvez pitorescos em sua rudeza natural, mas que estavam longe de representar um idílico paraíso terrestre, já que prenhem, como todos os lugares, das mazelas humanas de sempre.

São treze os contos do referido livro de Aldo Lopes. Uns mais curtos, outros, menos, mas nenhum aspirando a novela, ou seja, todos leais ao gênero contístico, todos concisos e contidos, em suma, magros, para usar a imagística expressão de Gilberto Freyre para se referir às antigas igrejas do Recife. Uma magreza sertaneja com certeza,
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a lembrar também Graciliano, consumado mestre dessas economias de carnes e de palavras. E aqui uma ressalva se impõe com a força da necessidade: Aldo apenas lembra Miguel Torga e mestre Graça, não os imita nem copia, dono que é de estilo e de voz próprios, marca de todo escritor de verdade – e que se preza.

Entre outras, os textos de Aldo possuem uma qualidade que a mim agrada muito: não apresentam o sertão nordestino e sua gente de forma previsível e óbvia. Não caricaturam o Nordeste, como fazem as novelas da Globo e alguns filmes brasileiros, não confirmam os estereótipos plenos da discriminação e do desprezo com que muitos “cosmopolitas” do Sudeste e do Sul identificam a nossa região e seu povo. Sob este aspecto, seus contos são ao mesmo tempo regionalistas e universais, assim como os de Torga e os romances de Graciliano. E a bem da verdade, mais universais que regionalistas, vez que o regional funciona apenas como pano de fundo dos dramas humanos narrados, mais realistas uns, meio fantásticos outros, mas todos verossímeis, quando se admite as infinitas faces da sempre enganosa realidade.

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Aldo Lopes Div. A União
No primeiro conto, intitulado O gancho do teu braço em meu pescoço, temos o narrador contando a fotografia que foi obrigado a tirar ao lado do corpo de seu irmão morto. Irmão gêmeo, por sinal. O pai fazia questão dessa foto mórbida, para não dizer macabra. E essa, lembremos, era a tradição vigente: fotografar o morto no caixão, como uma recordação do dia trágico e do ente que partira. Essa tradição não era só nossa, mas de outros povos também. Coisa bem rural, diga-se, já que nas cidades esse costume era menos frequente. O inusitado da situação do conto foi que, para a foto, colocaram o morto em pé, com o braço enlaçando o pescoço do assustado narrador. Mas quem negará verossimilhança a tal história? Quem, dentre nós, já não ouviu falar sobre eventos semelhantes? Eu mesmo já vi uma dessas fotos mortuárias. Sem falar do possível viés autobiográfico da narrativa, que só o autor pode esclarecer, se for o caso.

Em Uns braços, o contista cria a partir do conto homônimo de Machado de Assis. E se sai muito bem, provando os seus recursos de escrita e de imaginação. E por aí vai o autor, cativando o leitor sem nunca cansá-lo.

Se já não o tivesse feito suficientemente nas obras anteriores, neste seu mais recente livro Aldo Lopes confirma o seu valor de escriba, valor este que legitima – e bem – todas as suas conquistas na literatura e na vida literária.

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  1. Obrigado, Léo.

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  2. Obrigado, Milton.

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  3. Obrigado Gil Messias. Dei um pulo quando vi sua resenha sobre o livro Inventário do Esqueleto e outros contos. A sua leitura foi na inhanha, exatamente em cima daquilo que sempre desejei entregar. Sei de minhas responsabilidades, o cavalo é selvagem e foi não foi derruba a gente da sela. Uma avaliação desse nível, e partindo de um cara com sua bagagem, deixa qualquer um ancho. Gosto muito do seu livro O redator de obituários, comprei na Livraria do Luiz, por indicação do nosso amigo comum Hildeberto Barbosa Filho.
    De Miguel Torga conheço quase nada, mas guardo a força telúrica e poética de seu livro de contos Bichos. Não ganhou a simpatia dos juízes de Estocolmo, mas abiscoitou o prêmio Camões, o maior da língua portuguesa.
    Coimbra, Camões e Lingua Portuguesa me lembram Milton Marques que finalmente deixou a terra de Miguel Torga para voltar a terra do pau de tinta, à nossa terra brasilis.
    Boa tarde, Leo, evoé.
    Meus agradecimentos também ao Ambiente de leitura, Germano, pelo tratamento estético dado a esse belo texto crítico de Gil Messias.

    Aldo Lopes de Araújo


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  4. Nada a agradecer você tem, Aldo. Eu é que sou grato. Gil.

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