As lembranças e os sabores não precisam morrer para outros nascerem. O espaço da memória é infinito.
Juliana Ulyssea. Quero viver para sempre.
Juliana Ulyssea. Quero viver para sempre.
Na infância, duas pessoas foram fundamentais na minha formação literária, minha mãe e Chicuta. Minha mãe costumava contar histórias para que o sono chegasse. Menina traquina e fujona, só ficava quieta quando estava ouvindo histórias. Lembro-me bem de três dessas histórias que embalaram minhas noites insones – João e Maria, Maria Borralheira e A menina dos cabelos verdes que, em Câmara Cascudo aparece com o título de A Madrasta. Anos mais tarde,
descobri que essas histórias integram os livros de contos de Câmara Cascudo. Sempre que ouvia minha mãe cantando a parte em que a menina era enterrada viva, e pedia ao capineiro para que não cortasse seu cabelo me dava vontade de chorar.
Capineiro de meu pai
não me cortes meu cabelo
minha mãe me penteava
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o passarinho beliscou.
Chicuta trabalhava na casa de tio Pedro e reunia as crianças à noite na calçada da casa onde morava e contava histórias e mais histórias. Era natural do Engenho Baixa Verde (PB), mas não sei qual foi o motivo da transferência para Jardim do Seridó (RN). Chegou na cidade e ficou. Era muito católica, gostava de ir à missa todos os dias, vestia-se à moda antiga – vestidos bem compridos e com mangas. Era exímia na arte de contar histórias, tinha uma memória privilegiada. Como a velha Totônia, dramatizava o que contava e tudo ficava mais bonito e atraente. Desejava que a noite chegasse logo para ouvir suas histórias: “O pavão misterioso”, “História da Donzela Teodora”, “A Princesa da Pedra Fina”. Como fora moradora de engenho, certamente foi lá que ouviu essas histórias de cordel. Naquela época eu não sabia o que era cordel.
Há muitos anos que Chicuta habita o céu dos passarinhos. Para homenageá-la, transcrevo esse poema do pintor/poeta Hermano José:
Baixa- Verde
Os jardins de Baixa-Verde Como esquecê-los? Perfume de rosas, jasmins, crisântemos amargos se expandiam entre canteiros coloridos de verbenas. Os jardins de Baixa-Verde ficaram suspensos em um tempo que não acaba. Na entrada, tanques com água verde-lodo, espelho onde oscilavam reflexos da minha infância.
Os jardins de Baixa-Verde Como esquecê-los? Perfume de rosas, jasmins, crisântemos amargos se expandiam entre canteiros coloridos de verbenas. Os jardins de Baixa-Verde ficaram suspensos em um tempo que não acaba. Na entrada, tanques com água verde-lodo, espelho onde oscilavam reflexos da minha infância.
Ainda na infância, fui morar em Caicó (RN), e lá aprendi as primeiras letras no Colégio Santa Terezinha. Certo dia cheguei em casa com um folheto de cordel nas mãos chorando muito. Minha mãe veio logo saber o motivo do choro. Com aquele livreto nas mãos respondi: “Nesta história que li diz que o mundo vai se acabar com fogo. A primeira vez foi com água, agora vai ser com fogo”. Como toda criança, tinha medo de morrer (e ainda mais queimada), nem pensar! Minha mãe, uma mulher prática, me respondeu: “Neide, o mundo só se acaba para quem morre”. Não sei se entendi aquela resposta pragmática, mas o choro passou.
O tempo passou num instante, como diz o poeta, e o cordel continuou a me perseguir: no curso de Letras, na Universidade Federal da Paraíba, desenvolvendo pesquisas com a professora Neuma Fechine no Programa de Pesquisas em Literatura Popular (PPLP); no doutorado, ao escolher como corpus da tese o livro de poesia do poeta pernambucano Marcus Accioly – Guriatã: um cordel para menino. No Projeto da Academia Paraibana de Letras (APL) – Livro Falado, o cordel também se faz presente. Marcus Accioly e Manoel Camilo dos Santos têm vez e voz na minha fala.
Foi assim que o cordel entrou na minha vida, inicialmente sem consciência da sua importância, sem conhecimento de onde vinham as histórias que Chicuta contava, depois participando de cursos e de seminários sobre literatura popular e literatura de cordel, fazendo pesquisas.
O escritor José Lins do Rego reconhece a importância da literatura oral em seus livros. Os “nordestinados”, que somos todos nós que nascemos no Nordeste, temos muito o que agradecer aos cordelistas, às contadoras de histórias. Eles e as contadoras foram os primeiros mestres das crianças no período em que a televisão, os tablets e os telefones celulares não existiam. Enchiam a noite com o encantamento dessas histórias que atravessam séculos.
Repito versos de uma poema do crítico literário Peter O'Sagae:
Viva o Nordeste dentro da gente!