O Livro III de Notre-Dame de Paris é composto de dois capítulos – Notre-Dame e Paris à vol d’oiseau (Paris vista de cima ou Paris em rápida visão do alto) – que eu considero a pedra no sapato de quem está iniciando as leituras de Victor Hugo. Não que os capítulos sejam enfadonhos,
mas porque o leitor precisa se acostumar com o estilo de Hugo que, entre outras coisas, busca a contextualização do que ele acha importante para os seus romances – história, geografia, linguagem, arte –, brindando-nos com aulas magistrais a respeito de cada tema. No caso específico, temos duas grandes aulas, uma sobre a majestosa catedral de Notre-Dame e as mudanças nela operadas pelo tempo e pelos homens, sobretudo por arquitetos nada sensíveis; outra realizando uma visão sintética do conjunto formado pela Paris de 1482, época em que se desenrola o seu famoso romance.
Victor Hugo chama a atenção para a necessidade de preservação da famosa catedral. Ele parte de dois vetores danosos aos monumentos, o tempo, de uma forma geral, e o homem, mais especificamente, sintetizando tais ações numa frase latina – Tempus edax, homo edacior, calcada em dois versos de Ovídio: Tempus edax rerum, tuque, invidiosa Vetustas,/omnia destruitis (Ó Tempo, devorador de todas as coisas, e, tu, invejosa Velhice,/vós todas as coisas destruís, Metamorfoses, Livro XV, versos 234-5). Hugo adapta o sentido do que se encontra no poeta latino, para dizer que se o tempo devora, o homem é devorador. Por não entender a ação natural do tempo sobre todas as coisas, o homem se torna um agente ainda mais destruidor. Por esse motivo é que Hugo, de bom grado, faz uma tradução mais livre – “O tempo é cego, o homem é estupido” –, de maneira a distinguir uma ação natural e teleológica, de uma ação voluntariosa, chamando a atenção para a destruição (ir)racional, produzida pelo homem (Victor Hugo, Notre-Dame de Paris. In: Oeuvres complètes: Roman I; présentation, notices et notes de Jacques Seebacher. 2e. reimpression. Paris: Robert Laffont, 2002, Livre Troisième, Chapitre I – Notre-Dame, p. 569):
“Si nous avions le loisir d’examiner une à une avec le lecteur les diverses traces de destruction imprimées à l’antique église, la part du temps serait la moindre, la pire celles des hommes, surtout des hommes de l’art. Il faut bien que je dise des hommes de l’art, puisqu’il y a eu des individus qui ont pris la qualité d’architectes dans les deux derniers siècles.”
"Se nós tivéssemos tempo para examinar, uma a uma, com o leitor, as diversas marcas de destruição imprimidas à antiga igreja, a parte do tempo seria a menor; a pior, as dos homens, sobretudo dos homens de arte. É preciso que eu diga claramente homens de arte, visto que, nos dois últimos séculos, houve indivíduos que se apropriaram do atributo de arquitetos."
Em tradução nossa
Este Capítulo I se faz necessário, tendo em vista que, a despeito da tradução em língua portuguesa, que dá a primazia ao corcunda Quasímodo, a grande personagem do romance é a catedral que lhe empresta o nome, sem a qual a trama envolvendo a cigana Esmeralda, o sineiro Quasímodo, o poeta Pierre Gringoire, o capitão Phoebus de Châteaupers e o arquidiácono de Paris, Claude Frollo, não teria a substância que lhe dá essa “vaste symphonie en pierre” (vasta sinfonia em pedra), que Hugo define ainda como sendo “obra colossal de um homem e de um povo, ou conjunto uno e complexo com as Ilíadas e os romanceiros, de que ela é irmã” (Capítulo I, Notre-Dame, p. 569).
É do Capítulo II, Paris à vol d’oiseau, que eu gostaria, sobretudo, de me deter, diante do desejo do escritor de inserir a catedral em um cenário mais amplo, o da cidade de Paris, o que observamos já no início do capítulo (p. 575):
“Nous venons d’éssayer de réparer pour le lecteur cette admirable église de Notre-Dame de Paris. Nous avons indiqué sommairement la plupart des beautés qu’elle avait au quinzième siècle et qui lui manquent aujourd’houi; mais nous avons omis la principale, c’est la vue de Paris qu’on découvrait alors du haut de ses tours.”
"Nós acabamos de tentar restaurar para o leitor esta admirável igreja de Notre-Dame de Paris. Indicamos sumariamente a maior das belezas que ela tinha no século XV e que lhe faltam hoje; mas omitimos a principal, a vista de Paris que se descobria, então, do alto de suas torres."
Não há como resumir. O leitor terá que enfrentar o texto e procurar se deleitar com as descrições, as informações e as ironias hugoanas. E quanto maior a intimidade com a cidade, tanto maior será a fruição do texto. Hugo não deixa de comparar a Paris de 1482, com a Paris de sua época, 1831, quando o romance foi publicado pela primeira vez. Como um convite, no entanto, ao texto de Hugo, ouso fazer uma pequena incursão, costurando o seu texto como uma espécie de itinerário a ser deliciosamente seguido.
Nascida na Ilha de la Cité, cuja forma de berço abriga a cidade que se expandiu, tendo perdido em beleza, mas ganhado em grandeza, Paris pode ser dividida em três partes, na necessidade sempre didática da literatura de Victor Hugo: A Cité, antiga Lutécia, parte mais antiga; a Universidade, na margem esquerda do Sena, erigida sobre a montanha de Sainte-Geneviève, que a fez expandir-se até o Panthéon, e a Cidade, em si, na margem direita, a parte mais interna e profunda de Paris, cujos pontos mais distantes se encontravam nas portas Saint-Denis e Saint-Martin. Partes que se dividiam naquilo que as constituíam, respectivamente, na sua essência: igrejas, colégios e palácios.
Paris é, em uma das definições de Hugo, “une chronique de pierre” (uma crônica de pedra, p. 588), e esta crônica de pedra é uma cidade que canta, já anunciada na bela metáfora “vasta sinfonia de pedra”, do Capítulo I (p. 569). No último parágrafo do Capítulo II, encerrando também o Livro III, Victor Hugo produz uma página antológica, a respeito de como seria um dia de festa religiosa em Paris, momento indescritível ao som dos carrilhões das inúmeras igrejas e capelas, que se propagam pela cidade (p. 590, em tradução nossa):
“Et si vous voulez recevoir de la vieille ville une impression que la moderne ne saurait plus vous donner, montez, un matin de grande fête, au soleil levant de Pâques ou de Pentecôte, montez sur quelque point élevé d’où vous dominiez la capitale entière; et assistez à l’éveil des carillons.”
"E se vocês quiserem receber da velha cidade uma impressão que a moderna não saberia mais lhes dar, subam, num dia de grande festa, ao nascer do sol de Páscoa ou de Pentecostes, subam em qualquer ponto elevado de onde vocês dominariam a capital inteira, e assistam ao despertar dos carrilhões."
Hugo conduz o leitor pelo caminho do fenômeno ao nascer do sol, começando com uma “coluna de barulho”, que sobe de cada campanário, passando a uma “fumaça de harmonia”, até chegar a “um magnífico concerto” (p. 591, em tradução nossa):
“D’abord, la vibration de chaque cloche monte droite, pure, et pour ainsi dire isolée des autres, dans le ciel splendide du matin; puis, peu à peu, en grossissant, elles se fondent, elles se mêlent, elles s’effacent l’une dans l’autre, elles s’amalgament dans un magnifique concert.”
"De início, a vibração de cada sino sobe reta, pura, e por assim dizer isolada das outras, no céu esplêndido da manhã; em seguida, pouco a pouco, engrossando, elas se fundem, elas se misturam, elas se apagam umas nas outras, elas se amalgamam em um magnífico concerto."
É a ópera parisiense, cuja audição não se pode perder. Ópera que se realiza longe do barulho ordinário dos dias, que faz Paris falar, e da serenidade da noite, que a faz respirar, revelando, nos momentos extraordinários das festas religiosas, a cidade que canta (p. 591):
“Certes, c’est là un opéra qui vaut la peine être écouté. D’ordinaire, la rumeur qui s’échappe de Paris le jour, c’est la ville qui parle, la nuit, c’est la ville que respire: ici, c’est la ville qui chante.”
E não há, diz Hugo, no mundo, nada mais rico, prazeroso ou impactante (p. 591)
“que ces dix milles voix d’airain chantant à la fois dans des flûtes de pierre hautes de trois cents pieds; que cette cité que n’est plus qu’un orchestre; que cette symphonie qui fait le bruit d’une tempête.”
"que estas dez mil vozes de bronze cantando ao mesmo tempo dentro de flautas de pedra, altas de trezentos pés; que esta cidade que não é senão uma orquestra; que esta sinfonia que faz o barulho de uma tempestade."
No arremate ao capítulo, uma lição sutil de Hugo aos escritores: ao fazer uma referência literária, faça-a de maneira imperceptível, para que os andaimes, como dizia Bilac, não apareçam depois de pronto o templo. As dez mil vozes de bronze, para quem conhece, são uma referência homérica às Musas invocadas pelo poeta grego no Canto II da Ilíada, para, assim, poder narrar o magnífico desenrolar do fabuloso Catálogo dos Heróis. Hugo, como Homero, apela às Musas e às suas incansáveis e inumeráveis vozes oriundas de um peito de bronze, para falar de maravilhas que só os grandes escritores são capazes de perceber. E uma grande cidade é capaz de proporcionar.