Os amigos e colegas vão se encantando, vivos ou não. Outro dia, na passarela do calçadão da Duque de Caxias, deparei-me com um deles...

Transformação

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Os amigos e colegas vão se encantando, vivos ou não. Outro dia, na passarela do calçadão da Duque de Caxias, deparei-me com um deles. Não vou revelar o nome. Questão ética. Fazia parte de um grupinho que se reunia por ali, puxando do Ponto Cem Réis para a Praça João Pessoa. Conversa vesperal a discutir os sinais da vida. Ele se disse afugentado pelos anos,
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temia revelar o tanto estava anotado na caderneta. “Já não sou criança” – a idade escondida, disfarçada, escamoteada, envergonhada de se expor.

Tolice, rapaz. Rapaz. Os cabelos reduzidos, a careca avançada, as mechas ou cãs, como se dizia no vocabulário antigo, circundando o território brilhante da calvície. Quase não lembrei seu nome. Quando o identifiquei, fiquei pasmo em mim mesmo, fazendo avultar o tipo querido das meninas da adolescência que viam nele o ídolo, o ator esparro saído da tela do cinema para conversar com elas. Realmente, uma desfiguração da natureza (apelidada de natural), metamorfose elástica de que o espelho duvidava. Nunca pensei que chegasse a uma mudança visual tão acentuada.

Falando sério, perdera toda a suntuosidade dos músculos exibidos como taça, o nariz comprido, os regos de rugas perpassando a tez, o rosto amassado. Creio que não percebeu minha admiração.
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Claudicante, passara por difíceis momentos, coleção de mazelas que fazia questão de reprimir num sorriso achatado, morno, falando como quem assobia.

A conversa não ultrapassava os vinte quilômetros. Uma fala mansa, sussurrada, destilando nostalgias. Ele monologava. Parecendo um bêbado, repetindo episódios de antanho (ainda se emprega tal palavra?): terapia feita a sós. Sem mais paciência, levantei-me e procurei outra rota.

A partir de então, tenho evitado parar para escutá-lo. Não sei se me falta caridade. Está mais alquebrado. O tempo se encarregou em desnudá-lo daquele charme irresistível. Não se acostuma consigo. Cecília Meireles no caminho: “Em que espelho/ perdi a minha face? ” Soube que se exilou em casa. E exilou o entusiasmo pela vida.

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  1. Anônimo1/8/24 06:57

    Beleza de texto, amigo Guerra. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Anônimo1/8/24 07:25

      Grato, amigo poeta e escritor. Abraço.

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  2. Anônimo1/8/24 13:45

    Vez ou outra, isso acontece comigo; quando ocorre, tomo um susto, mas logo tento disfaçá-lo. Ponho-me a observar o estrago; o tempo é cruel: enruga a pele, curva a coluna, embranquce os pelos e tira-lhes o brilho, desconjunta as articulações, o andar cambaleia, o raciocínio fica indolente, a vista embaça os contornos, a audição pede socorro, enfim, é uma tragédia; é uma tragédia anunciada, mas prefiro experimentá-la. Seria muitíssimo pior ter partido na juventude igual a um amigo que se foi na flor dos anos, aos dezessete.

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