O filme inicia em um cenário sem cor, sem vida, mórbido, um lago congelado, onde o único sinal de vida são dois patos que por lá passeiam. Ao longo das cenas, ambientes acinzentados, conferindo um ar de introspecção e de pouca vitalidade ao contexto. Essa falta de frescor encontra-se no olhar perdido do menino, que se sente como um produto falhado do casamento entre seus pais. Diante disso, o garoto desaparece, literalmente, embora possa constituir uma metáfora, haja vista que em um processo de separação é comum que existam muitas negociações acerca do filho – desde a discussão a quem caberá a guarda até os valores da pensão, mas a cria raramente é enxergada e escutada.
Assim, no entorno dessa história, o indivíduo – ou seja, aquele que não se pode dividir – acaba sendo fragmentado pelas relações ambivalentes de marido e mulher, pai e mãe, que tentam com esforço se dissociarem, mas nem sempre conseguem. Isso é marcado nesse longa-metragem ao se notar que, mesmo sob a hipótese de que a criança esteja morta, o casal não encontra a mínima harmonia para o diálogo. Constantemente se acusam. Em determinado momento, questionam-se sobre quem o menino mais precisa: do pai ou da mãe? E a quem cabe dele cuidar, do ponto de vista institucional – o exército, a igreja? Esse questionamento sugere mais uma alienação da função parental, ou um pedido de socorro...
No suposto desespero por encontrar o filho, os pais recorrem à polícia russa, que se mostra pouco interessada em descobrir o paradeiro do menino. Um policial recomenda que os genitores procurem uma equipe voluntária de resgate. Percebe-se, então, uma ineficiência estatal, que sequer se compromete com algo de ordem pragmática. Então, como esperar uma política comprometida em reabilitar famílias em relação a seu dano – a destituição do lugar de acolhimento?
Sem amor não há comunicação, sem comunicação não há amor. Em nenhum momento na película é mostrada uma conversa entre pai e filho. Com mãe, há apenas a violência manifestada em gritos, a insatisfação no parto contada pela mulher à cabeleireira, na qual revela que o menino demorou quase 24h para vir à luz e que ele já cheira como pai, indicando tamanha aversão que sente pelo ex-companheiro e pelo rebento. Ela sacrifica o filho em nome do ódio, tal qual Medeia.
A rede dos desafetos no filme “Sem amor” é extensa. Ainda é possível apontar para os relacionamentos que o pai do menino, Boris, e a mãe do garoto, Zhenya, desenvolvem após o divórcio. Boris será pai novamente. Sua nova mulher, embora terna, mostra-se ensimesmada e insegura, teme que ele também a abandone. Zhenya está envolvida com um homem bem-sucedido, para o qual diz que pela primeira vez está amando e para o qual revela que nunca quis ser mãe.
O fato é se “quem casa quer casa”, Zhenya sai da residência de sua mãe em busca de um refúgio, de segurança, mas não a encontra no ex-marido. Casa como fuga, engravida, frustra-se, não consegue amar e acaba reproduzindo a violência sofrida por ela para o filho. Assim, com a mãe seca, literalmente, que nem leite tinha para prover ao garoto, um pai impotente, que temia perder o emprego, por estar sob vigilante olhar do chefe religioso e conservador; uma avó tão dominada pelo ódio e tão raivosa quanto os demais e ter apenas um amigo (da escola), Alyosha não tinha para onde ir...
Para onde o garoto iria? Sentindo-se um fardo e o peso do deslocamento, não sendo ele objeto de amor, restou-lhe a evasão como conforto. Por não ter a quem punir, pune-se. Diante de um corpo distanciado, os pais não o reconhecem. Saber de cor algo é saber de coração. Infelizmente, o estranhamento que os acometeu foi por falta de amor. Na vida, pode-se ver o que fizeram conosco para reproduzir ou para fazer diferente. Sem amor, não há casa – apenas um teto que desaba em mágoa.
Texto publicado no jornal A União em 03/05/2024