Mas o que chamou a minha atenção a seu respeito foi exatamente a sua docilidade diante do inimigo, diante do seu algoz, sem perceber o mal que esse poderia lhe fazer. A confiança tornou-o indefeso, o que acelerou a sua extinção. Isso levou-me a pensar acerca das situações de abuso nas relações do âmbito humano, a começar por famílias disfuncionais, em que os pais têm comportamento abusivo em relação a seus filhos, seres indefesos e completamente dependentes. E não me refiro nem a abusos físicos, que também podem fazer parte desse quadro, mas àqueles psicológicos e emocionais. O ambiente inseguro, onde reinam o medo, as ameaças, a indiferença e a desvalorização, pode ser gerador de baixa autoestima, fazendo a criança se sentir inferior, candidata a ser, no futuro, um adulto autodepreciativo e presa fácil a relações abusivas. Não conhecendo outro paradigma, buscará pessoas que irão refletir esse padrão ao se relacionar consigo, o que lhe gera bastante sofrimento. Tal como o pássaro Dodô, entregar-se-á ao outro, indefesamente.
Mas, por que alguém permanece em uma relação abusiva, se causa tanto sofrimento, tanta dor? Primeiramente, quem se encontra em uma relação assim, na maioria das vezes, não tem consciência disso. Depois, frequentemente, mantém-se nela porque é aquilo que conhece quanto às relações humanas, pois a primeira que teve, a relação estruturante com os pais ou com os seus substitutos, foi, muito provavelmente, abusiva, tornando-se ela o seu modelo, a sua referência. Para essa pessoa, ser maltratada, diminuída, desprezada, portanto, é sentido como algo normal, pois ela desconhece outra forma de se relacionar e de se enxergar.
Há relações abusivas de vária ordem. Elas podem existir na parentalidade, nas amizades, nas relações profissionais e, mais comumente, nas relações amorosas. Nesse último tipo, a pessoa fica na relação e nela se sustenta como se fosse um bote salva-vidas. Mesmo sendo maltratada, humilhada e desrespeitada, não consegue se desvencilhar, e se o consegue, corre o risco de repetir o mesmo padrão em outro relacionamento. É possível pensar na imagem de alguém que, encontrando-se no meio do alto mar prestes a se afogar, agarra-se a um cacto cravado de espinhos, ou a uma tábua cheia de pregos pontiagudos, não a soltando com medo de não poder sobreviver, pois está presente a angústia da separação, do desamparo e do abandono, apesar de ser ferida e sangrar continuamente. A dependência emocional rege a relação, a partir da vinculação masoquista e sádica respeitante às partes envolvidas. Quando, por exemplo, há traições da parte abusadora, para a pessoa abusada, o que mais dói é a repetição do padrão de desrespeito, de humilhação, de indiferença e de desprezo, pois corrobora a menos-valia que sente em relação a si mesma, a qual fora impressa na primeira infância na relação com os pais e reiterada até se tornar adulta. E como não consegue se desvencilhar a despeito das traições e do sofrimento gerado, haja vista o pouco valor que a si atribui e a falta de consciência quanto ao que está a acontecer, sofre profundamente. Logo, o que dói, não é propriamente, ou apenas, o fato de o outro se envolver sexualmente com outras pessoas, mas, sim, a reverberação da marca inconsciente da dor outrora sofrida e que se renova, agora, com outra roupagem. Trata-se da reiteração de um padrão doentio, lugar do qual a pessoa abusada não consegue sair, apesar de sofrer, repetindo-se sempre, como um círculo vicioso.
É possível mudar esse quadro? Sim, é possível! É fácil? Não, não é! Mas terapias há que auxiliam a pessoa nesse processo de ressignificação e de libertação, que pode ser demorado, mas que é transformador. É preciso, no entanto, dar o primeiro passo, pedir ajuda, para que, assim, consiga modificar o quadro interno construído a partir de crenças deturpadas impostas por outros a respeito de si mesmo.