Não tenho por preguiçoso quem, rotineiramente, seja capaz de dar cinco voltas a pé em torno da Praça da Preguiça. Perdão, Praça Sílvio Porto, como indica a plaquinha instalada pela Prefeitura desde o ato da inauguração. Foi Oswaldo, meu amigo paulista, quem fez as contas: “As quatro calçadas externas somam seiscentos metros, o que dá três mil ao cabo da série de cinco giros”, disse-me quando já com as pernas bambas, eu me dissolvia em suor. Estávamos, para meu vexame, na metade do percurso.
Alto e de compleição atlética, Oswaldo é professor de ginástica, como assim querem os da minha geração. As de hoje o tratam por personal trainer, o que não é de espantar no Brasil do shopping center, delivery, fitness, marketing, diet, smartphone, moto boy, home office, on line, off line e por aí vai. Que assim seja, pois são agora mais largos os passos da globalização. Contudo, peço a compreensão pelo meu pé atrás com o anglicismo de adoção exagerada. Tal como Ariano, não troco meu oxente pelo ok de ninguém.
Oswaldo conheceu João Pessoa há seis anos e se apaixonou pela cidade. Com mulher e filho, veio não somente para o bairro, mas, ainda, para o prédio onde eu moro. Prédio, diga-se, com muitos sotaques,
Foi, exatamente, o que fez meu amigo Oswaldo, gente boa, a exemplo destes que em geral nos chegam. Quase toda sua clientela habita o mesmo endereço e pega os mesmos elevadores até a Academia instalada no piso com equipamentos modernos. Trinta e dois andares separam o ponto mais baixo do mais alto. Juntos, abrigam 360 famílias. A ele expliquei que, sem mais espaço horizontal, Manaíra e outros bairros praieiros crescem para cima.
Aqui, nunca dá para escapar da esteira, dos agachamentos e do levantamento de peso duas vezes por semana, pois sempre estou ao alcance do interfone. E deles não desejo fugir porque já muito me preocupa a falência dos músculos de cuja existência o desuso me fez esquecer. Sinceramente, eu sequer lembrava de que os possuía até que as dores resultantes do mínimo esforço denunciaram suas presenças nos meus braços, pernas e peito. Há pouco, eu saía orgulhoso do cross over (êpa!), ante a vã suposição da quebra dos meus limites, quando um Oswaldo impiedoso me cientificou de que dona Miriam, a moça que levei ao altar, consegue erguer maior peso. Isso mesmo, tanto ela quanto o caçula que parimos também são seus clientes.
Em dado momento da caminhada noturna meu joelho esquerdo dobrou na Praça da Preguiça. Pus a culpa nos óculos e num buraco desapercebido em trecho escuro. Meu amigo fingiu acreditar nisso até quase ele mesmo tropeçar em um tronco não de todo enterrado. Antes que eu o fizesse, Oswaldo criticou o desprezo institucional ao que poderia ser uma das áreas mais ajardinadas, iluminadas e atraentes do nosso bairro.
Tive a oportunidade para inteirá-lo de como tudo começou. Em meados de 1980, aquilo era um terreno baldio cobiçado pela especulação imobiliária. Os proprietários das casas já construídas ao derredor iniciaram então a luta pela preservação do patrimônio público. Uniram-se e criaram a Associação dos Moradores de Manaíra a fim de ali evitar a edificação desenfreada de espigões. Sob a presidência do engenheiro Eduardo Araújo, o grupo bateu às portas da Prefeitura, recorreu aos canteiros de obras em busca das sobras de madeira, brita, ferro ou tijolos e aproveitou o retorno de caminhões com cargas entregues no interior para o transporte, a pequeno custo, de pedras da região do Cariri propícias às calçadas. A Praça nasceu, assim, dos desembolsos pessoais e dos esforços coletivos dos quais participavam, ainda, donas de casa dispostas a encontrar tempo para a modelagem dos canteiros e a irrigação das primeiras flores.
Conheci Eduardo Araújo em razão de pauta do editor Josélio Gondim para uma das edições da Revista A CARTA, em cuja equipe eu atuava. Moradora, à época, de Manaíra, a professora Ângela Bezerra de Castro fez as apresentações. A matéria sobre este surpreendente e belo exercício de cidadania atraiu, tão logo publicada, as atenções da Sucursal recifense da Veja, o semanário mais importante do País, onde a história também ganhou espaço.
Tempo depois, fui procurado por um Eduardo desejoso de que eu fizesse parte do grupo que cuidava de sua campanha para a Câmara de Vereadores de João Pessoa. Disse que ele teria meu voto, mas recusei o convite. A título de colaboração, sugeri que imprimisse cópias da nossa entrevista e as distribuísse, à medida do possível, com os moradores da orla, reduto do seu potencial eleitorado. Assim fez, ao que me disse. Lembro-me de que foi eleito com votação expressiva.
A Praça concebida e executada por Eduardo e seus amigos contém o primeiro baobá cultivado na cidade. Falo da árvore símbolo da cultura africana. Tinha posto com destacamento propositalmente duradouro a fim de que os policiais pudessem conhecer os residentes e seus filhos. Tinha quiosque para água de coco, sucos, refrigerantes e sanduíches. Tinha equipamentos para ginástica em boas condições, parque infantil bem frequentado, boa iluminação e canteiros exuberantes. Com quase tudo pronto, a Prefeitura chegou com a placa e a festa de inauguração.
Sei de seus progressos e retrocessos ao longo do tempo. É uma pena revê-la escura, esburacada e insegura. Ali, o descaso só não parece abater o baobá de origem africana. Até porque este traz de suas origens, nas entranhas e raízes, a resistência aos rigores do clima e ao desprezo dos homens. Mas nem tudo deve ser desesperança para a Praça da Preguiça, ambiente onde o instrutor tropeça e o aluno bambeia as pernas. Afinal, estamos todos, gente, bichos, ruas, parques e praças, à véspera de novas eleições.