Oração
Hildeberto Barbosa
As pedras paralisadas
me movem o espanto
nas veias dessa manhã.
É um domingo neutro
a se desdobrar sobre a pele
dos campos paralíticos.
Há uma enorme e sagrada
limpeza batendo forte
no meu coração.
Meu coração, bicho feroz,
atento aos decretos do sangue.
A vida também acode, aqui,
dentro do silêncio, do absurdo.
As criaturas cumprem
a caligrafia do destino.
O mais fino tesouro da terra
se converte numa oração
sem motivos. Opaca, laica,
salubre como o alho natural
que me governa.
Como o samba de Noel, chega a mim, em feitio de oração, um poema do Professor Hildeberto Barbosa. Música, oração e poesia têm algo em comum: a contemplação, o pasmo diante da existência e da complexidade de tudo que a constitui e que nos cerca, a transcendência do ordinário, a conexão com algo maior do que nós mesmos, o encontro com o extraordinário.
A paralisia das pedras move a perplexidade do poeta que, com a metáfora das veias da manhã, diz de vitalidade, de energia pulsante, de conexão profunda com a vida.
A quietude do domingo neutro, sem planos ou compromissos agendados, a se desdobrar sobre a pele dos campos paralíticos, se confronta com o bicho feroz, indomado, impetuoso que é o coração, atento aos impulsos, às prescrições do sangue, e para onde também acode a vida, em sua ambiguidade.
Um sentimento de enorme e sagrada limpeza, de renovação, de purificação, talvez de clareza e paz interior, bate forte no coração desse poeta poderoso e primoroso, reverente à ordem natural das coisas, obediente à natureza que ele também é, aos seus desejos, instintos e pulsões, no cumprimento, sem remorso ou culpa, da caligrafia do destino.
O que chega a mim na “poiesis” hildebertiana , na sua iluminação, é que esses momentos de perplexidade e de conexão com o mundo ao redor, transmutados em poesia, podem se tornar um modo de oração, uma forma de buscar conforto, cura ou consolo em momentos difíceis... aqueles em que o peso do viver arranha o âmago.
Nesse feitio de oração, a poesia me alcança também como um clamor, um rogo para contemplar a beleza e a complexidade do mundo ao redor, encontrar significado e paz no silêncio e no absurdo da existência.
O mais fino tesouro da terra – quem sabe, o amor, a arte, a música, a poesia - diz um dos versos, se converte numa oração sem motivos. Oração opaca, sem brilho, simples e despretensiosa; laica, secular, mundana; salubre, saudável, benéfica e curativa como o alho, erva comum e terrena, conhecida por suas propriedades medicinais, desligada de questões religiosas, alegoria para a ideia de que a natureza e suas dádivas têm o poder de governar, apascentar, nos influenciar de forma significativa e profunda.
Ensina o velho Noel que “Batuque é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio”. Do mesmo modo, penso, não há escola que ensine a poetar... “Sambar é chorar de alegria, é sorrir de nostalgia, dentro da melodia (...) E quem suportar uma paixão, sentirá que o samba então nasce no coração”.
Tomo emprestados os versos da música de Noel...Penso que poetar é também chorar de alegria, experimentar sentimentos intensos e contraditórios... é sofrer com intensidade emocional a experiência da paixão, do pathos, da dor e da entrega, para que a poesia nasça assim, vigorosa e verdadeira, no coração de um poeta. Nasça como esses versos hildebertianos, que atravessaram o meu amanhecer em feitio de Oração, retirando o meu domingo da neutralidade e me arremessando nas exorbitâncias insistentes de sentido do existir.