A tragédia, como gênero literário, segundo Aristóteles , é uma imitação de homens melhores do que nós, por intermédio de personagens ...

O que pode um escritor?

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A tragédia, como gênero literário, segundo Aristóteles, é uma imitação de homens melhores do que nós, por intermédio de personagens em ação (πράττοντας ou δρῶντας), dialogando entre si. A mímesis (μίμησις) sempre se dá de acordo com uma possibilidade e com uma necessidade, entretecida por uma linguagem condimentada, no sentido de exprimir um estilo figurado que agrade ao espectador e ao leitor, tendo a tragédia por elevado objetivo, através da catarse (κάθαρσις),
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LaocoonteA. Appiani, 1790
operar uma purificação das emoções, ao provocar o medo e a piedade (1449b).

Entenda-se medo (φόβος) com o sentido grego de uma sensação que nos impele a fugir de uma situação perigosa. Do mesmo modo, compreenda-se piedade (ἔλεος), com o sentido de compaixão pelo outro. Assim, a um só tempo, o espectador, pois a catarse só funciona com a representação, impactado pela encenação a que assiste, sem intermediários entre ele e a ação encenada, sente-se identificado com a desgraça do outro e busca fugir de uma ação semelhante que possa levá-lo também à desventura. A tragédia, portanto, ensina. A ação que vemos diante de nossos olhos, ainda que ficcional, tem mais força do que aquela que nos é narrada por um terceiro, distanciada de nós, no espaço e no tempo. É isto que no entendimento de Aristóteles faz a tragédia ser superior à epopeia, pelos objetivos de suscitar o trágico e o sentimento de humanidade.

A tragédia, entendida como mímeses, é oriunda de uma poíesis (ποίησις), a criação, que se encontra no âmbito do pensamento, do espírito (palavra aqui tomada sem qualquer conotação religiosa). Já a tragédia que se lê ou a que se assiste é o poíema (ποίημα), a criatura ou a forma acabada. A criação sai da pena do poietés (ποιητής), aquele que cria, para dar vida à forma. Tudo isto se encontra na Arte poética (Περὶ ποιητικῆς), de Aristóteles,
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ÉdipoJ. Krafft, 1809
a primeira sistematização, no mundo ocidental, de um estudo literário e comparativo, envolvendo os gêneros trágico e épico, com o filósofo dando primazia à tragédia, considerando-a superior, cuja forma perfeita seria o Édipo Tirano.

Victor Hugo, em Noventa e três (Quatrevingt-treize, 1874), seu último romance, dá uma demonstração de sua inventividade como escritor amparado em leituras fundamentais, como Aristóteles. O rei Luís XVI, já deposto pela Revolução Francesa, encontra-se no cárcere da Torre do Templo, à espera de uma decisão sobre o seu destino. A Convenção Nacional, braço de sustentação da revolução (“Jamais nada de mais alto apareceu sobre o horizonte dos homens”, Segunda Parte, Livro III, Capítulo I, “La Convention”, subcapítulo 1, p. 891, tradução nossa), em assembleia, põe em votação a sorte do descendente da dinastia dos Bourbon, apesar de os revolucionários, depois de proclamada a República, chamarem-no “Cidadão Luís Capeto” (Primeira Parte, Livro I, Capítulo único, “Le bois de la Saudraie”, p. 795), por esta dinastia ter tido cinco reis com o nome de Luís (de Luís VI a Luís X).

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O julgamento de Luís XVIW. Miller, 1796
Os membros votam de maneira variada, de modo a punir o rei, tendo como resultado a vitória esmagadora da pena de morte, na guilhotina. Victor Hugo, então, faz uma sutilíssima menção, no momento em que se decide algo tão importante pela assembleia:

“Onde a tragédia entrou, o horror e a piedade permanecem".
Parte II, Livro III, Capítulo I, “La Convention”, subcapítulo 7, p. 903
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A execução de Luís XVILitogravura, S.XIX, autor desc., Musée Carnavalet
O que pode um escritor? Victor Hugo cita Aristóteles e o fundamento da tragédia. Cita, contudo, não por eruditismo fátuo, cita como estrutural, no grande capítulo “A Convenção”. Aristóteles, como sabemos, teoriza sobre a ficção, a mímese, no seu gênero trágico e na sua forma de tragédia. Na sua teoria, Aristóteles mostra a ficção como uma imitação de uma realidade possível, de que surge a criação. A tragédia, portanto, é uma forma de expressar uma realidade possível, porque transfigurada pela criação da mente e do espírito de quem a produz. Não é a realidade, mas,
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sendo uma possibilidade, é, o mais das vezes, mais expressiva do que a realidade chã.

Como grande e múltiplo ficcionista – poeta, dramaturgo e romancista –, Victor Hugo sabe como penetrar e como sair dos meandros da poíēsis. O capítulo “A Convenção” é grande em todos os sentidos, na sua extensão, dividindo-se em 12 subcapítulos, e nas informações importantes ao leitor, para o entendimento daquele ano de 1793, crucial para a transformação da França em um novo país, único na Europa a adotar, naquele momento, a República como forma de governo, mesmo que uma das consequências imediatas seja o jacobinismo, a exacerbação do espírito revolucionário, e a sangrenta luta intestina pelo poder.

Nessa circunstância, a condenação de Luís XVI à guilhotina é a tragédia, ocasionada pela peripécia (περιπέτεια), que nada mais é do que uma inversão das ações, levando da ventura, para a desventura. Em sua condenação expressam-se momentos de piedade (exílio, banimento, prisão a viver como um espantalho...) e de horror (morte decapitado, na guilhotina), com alguns votos expressando escárnio (“Um rei não é útil senão pela sua morte”, “Se a morte não existisse, seria necessário, hoje, inventá-la”, p. 901.

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Victor Hugo (1802—1885), em ilustração de Théobald Chartran para a revista Vanity Fair ▪ edição 20.09.1879, seção Homem do Dia.
A diferença entre Victor Hugo e Aristóteles está, em primeiro lugar na sutileza da citação. Hugo cita sem citar. Só quem possui a informação devida sabe a que o romancista está se referindo. Hugo não precisa mostrar a fonte. Como diria Olavo Bilac, não há necessidade de se mostrar os andaimes do edifício. Só precisamos ver a sua beleza depois de pronto. De quebra, Hugo nos mostra, ainda que não tenha necessariamente pensado nisto, a insustentabilidade do conceito de intertextualidade explícita e implícita. Para quem detém a informação, a citação de Hugo é explícita; para quem não a tem, mesmo que Aristóteles tivesse citado, a menção não iria além do nome do filósofo. Trata-se de um excelente exemplo do significado do conceito de horizonte de expectativa.

Por fim, a diferença mais importante entre ambos reside no fato de que Aristóteles trata de uma teoria de um gênero ficcional, a tragédia, cuja base é o mito; Victor Hugo trata de uma realidade objetiva, a assembleia da Convenção Nacional, na especial circunstância em que se decide o destino de Luís XVI, momento particular da Revolução Francesa, como componente imprescindível a uma narrativa ficcional. Neste caso, a realidade objetiva revela uma piedade que se abranda, sendo menos compassiva do que a da tragédia grega, e um medo que se exacerba em horror. Tem razão o escritor ao afirmar que “desde que a justiça humana existe sempre pôs um eco do sepulcro sobre o muro do tribunal” (II, III, I, 7, p. 901).

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  1. Você é muito grande, professor Milton Marques!

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