Os pés dentro da ilha Falar da superfície, o que envolve, encharca e afoga, o que gruda nos pés – mangue e areia –, o cinz...

O Estalo da Palavra (XIII)

poesia capixaba espirito-santense jorge elias
 
Os pés dentro da ilha
Falar da superfície, o que envolve, encharca e afoga, o que gruda nos pés – mangue e areia –, o cinza absoluto, o verde disperso nas frestas e espelhos, interrompendo o voo do pássaro mergulhando nas marquises e suas crostas de minério disfarçadas em nuvens. Contar uma história dos retratos rasgados.


Úmida
Farfalham nas rachas da ilha línguas ásperas vento sul – alado centauro – entre coxas de sereias órfãs Maresia poeira salgada nos cílios corte na lâmina dos lábios gozo entre versos e um sol perdido no horizonte das dúvidas de ser o sexo das putas o melhor berço para um segredo : o cansaço


Apocalipse
Ilha: curral dos peixes sem memória Olhos vidrados sob o etéreo azulejo branco.


Pergaminho para o Ocidente
O sonhador breve testemunha a brisa da cilada; pleno, se desfaz, em segundos, da malha do cinismo. O sonhador entristece a soberba, que o espreita, entre dentes. O sonhador estende nuvens, emaranhado no silêncio. O que pretende sobras enternece a sanguínea hiena. Seja fuga ou desperdício entreter-se nos bosques do nada. Vocação autofágica do inútil: a nuance, o amor do bruto do percorrer-se nas encostas de mel.


A falta do beijo
Sobre uma tarde no Convento da Penha As bocas gozosas escorreram com os anos Voragem de instante ─ passado (o que se come e se mastiga é alimento e não imagem) Recordar o que não se teve ausência definitiva suspensa na descontinuidade de uma tarde A boca virgem ─ desperdiçada ─ e uma timidez bendita em nossos lábios abertos.


O tempo das ostras
Para Sérgio Blank A suprema arte é a raiz dos ausentes E se as mãos fechadas tiverem o dom de deflorar os sentidos? E o germe alijado no assombro ― a palavra ― erguida pelo morno vento tomar assento nas almofadas dos sonhos? E se o manto do tempo revestir a ilha revestir o homem com o nácar do descontentamento? E a forma tosca ― antes sem sentido ― se expandir esférica e romper a boca ofertando a pérola?


De Ptolomeu a Camus
Todos os Oceanos convergiam para a delicadeza e os pratos eram a terra sobre a névoa da incerteza Do mar ao sal ― tempero da língua ― na mesa dos homens antigos Dragões, ruína do Mundo queda-d´água do Prata Austral destino Brasil retinto Não de prata, mas do vermelho do pau brasílico Queda, infortúnio de Deus nos beirais do Mestre Álvaro mirada do Mar profundo que nasceu para o crepúsculo Pois se o céu no Mar é o que vejo de casa o que sinto é um passo após o outro no absurdo.


Uma humanidade
A humanidade se desfaz a cada partir do Sol e o fato o relance são a surpresa dos olhares extintos pelo sono. Existe um remanso onde repousam nossos sonhos que velam ― insistentemente ― quem sabe uma Nau que desague neste porto Atlântico.


Aterro
Nessa praia não chegaram rosas, não chegaram as cinzas de Gandhi ou um quase poema (desses que entardecem na memória) Vi a morte chegar nessa praia nos olhos do amigo com sua camisa da seleção canarinho Vi essa praia crescer, tomar forma, derramar-se sobre o mar sob a força das dragas e tratores. Vi Joana, a polonesa, com seus olhos azuis ― Num tempo que eu ignorava a Polônia e a poesia de Wislawa ―; passei em suas costas o filtro contra o Sol, e como foi bom tocar a beleza. Despi mulheres nessa praia e alisei suas bundas como não fiz com Joana. Fiz da praia uma cama em um primeiro de Janeiro de um ano qualquer. Confiei nessa praia e me larguei inconsciente ouvindo um trem distante. Hoje, aqui estou na mesma praia embora o tempo da delicadeza tenha se esvaído ou, quem sabe, tenha sido sorvido por uma urgência surda para o que é eterno.
Nota do autor O projeto e as obras de Aterro do Suá (depois Aterro da Comdusa) tiveram início em 1971 e finalizaram em 1977. Com aproximadamente 1.300.000 m² tinha como objetivo expandir as áreas residências e comerciais da Ilha de Vitória. Com ele foram criadas algumas praias como a chamada “Curva da Jurema”.


9⁰ andar – terceira janela à direita
Dedico a você minha consciência e essa vontade besta de persistir tentando a eternidade Gira flor retorna ao berço das imagens Mundo em moldura de sonhos nascido no infinito dos olhos a cada nascente e poente retorna ao berço do imenso e da quase morte Gira flor que no sumidouro dos dias restou a vida retinta pela claridade que ensinou do silêncio na espuma das nuvens Deixa retornar o pardal de asa costurada na máquina Singer Recorda a moça nua a rodar o bambolê, e se masturba os belos seios da Avenida República e se masturba o casal da 13 de Maio e se masturba Espreita a cidade que cresce erguendo janelas para você e o céu Vigia o pai que não chega, o vendedor com seus pintos de granja, as prostitutas, as carroças com sacas de café e as mulas repicando as ferraduras na Presidente Pedreira, os carregadores negros a te apresentar Portinari Gira flor nessa elipse perfeita dos urubus e seu voo mágico de asas paradas Gira flor pois o que nutre esse voo inútil ― a paz do retorno ao útero das pastilhas amarelas do edifício Santa Rosa Gira flor essas hélices de pétalas, relembra as tempestades mutilando os sonhos, os faróis ensaiando sombras, e recorda que anoitecer é acatar o sem-sentido Gira flor, percebe as águas que depuram as perdas e apagaram as chamas que mataram o menino no Morro do Moscoso Gira flor o voo possível e resgata a beleza no interminável da memória.


Cabotino
Me gusta esta costumbre de la rubrica por lo inútil Miguel de Unamuno O sal curtiu a corda exangue Amarras e terços costuraram os dias a esta terra ao cais do porto e ao apito dos navios que conhecia pelo nome Ir e voltar: sonho de uma sombra Até o dia em que o Não a reconheça e vibre a corda lançando-a de volta à sinfonia do esquecimento.

*Poemas do livro Cabotagem – Editora Modrongo (2016)

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Um grande poeta recitando grandes poemas

    ResponderExcluir
  2. Além de um ótimo Médico, é um poeta da atualidade, e um amante da Natureza.

    ResponderExcluir

leia também