O amigo jornalista Luiz Carlos de Souza disse-me, certa vez, que se Mozart jamais tivesse existido e viesse à luz agora, criando a mesma música genial que produziu no século XVIII, provocaria o mesmo deslumbramento.
Lembrei-me disso uma série de vezes, ultimamente. Quando vi, por exemplo, os métodos de Duchamp — de cem anos atrás — reeditados no que se convencionou chamar de Arte Contemporânea, com sucesso estrondoso. Ou quando li o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e me senti ante um Jorge Amado redivivo, só que amazonense, e o vi obtendo o Prêmio Jabuti de 2001 com o velho regionalismo dos tempos de Zé Américo e Zé Lins. E quando li O Dia dos Cachorros, Prêmio Câmara Cascudo de 2005, do paraibano Aldo Lopes de Araújo, que explora não só o regionalismo, como também o realismo mágico, tal como Gabriel García Márquez ou José J. Veiga o fizeram nos anos 60 e 70.
Mas não só por isso esse romance é polêmico. Aldo Lopes é de Princesa e tem uma visão da Revolução de 30 muito parecida com a de todos os opositores do movimento, como Ariano Suassuna ou Carlos Dias Fernandes (que em seu romance Fretana, de 1936, chamava João Pessoa de Jayme Villoa). Digo polêmico porque a Paraíba parece que ainda se divide em perrepistas e liberais, tal qual a Verona de Romeu e Julieta vivia rachada entre montéquios e capuletos. Exagero?
Não. Veja a quantidade de gente que odeia o nome da capital. E confesso que me impressionei muito — há cerca de um ano — quando fui a uma solenidade na Academia Paraibana de Letras e vi a sala quase em peso cantando o Hymno a João Pessoa:
João Pessoa, João Pessoa,
Bravo filho do sertão:
Toda a pátria espera, um dia,
A tua ressurreição!
Como não tenho nada a ver com a coisa, entretanto, volto à primeira polêmica: O Dia dos Cachorros - regionalista e com seu realismo mágico - resiste ao deslocamento no tempo, como o Mozart de Luiz Carlos de Souza? Carlos Newton Júnior (poeta, crítico, ensaísta) diz, na orelha do livro, que essa obra promoveu sua reconciliação com o chamado realismo mágico.
Fala de sua encantação ao ver os episódios mais importantes da Revolução de 30 magicamente transfigurados pela força real do texto poético... e acho que ele tem razão. Aldo conta sua história com a óptica do menino que — segundo me disse — cresceu ouvindo a versão do avô, a versão da própria Princesa do que houve e do que não houve naquele épico ano. Veja como Spielberg dirige E.T.: do ponto de vista das crianças, com os adultos vistos, na maioria, somente da cintura para baixo, como se dá, também, com os seres humanos nos velhos desenhos animados de Tom & Jerry, criados por Hanna & Barbera.
O Dia dos Cachorros tem algo semelhante, um truque todo seu: um certo desfoque infantil da História, a começar pela ausência dos nomes dos grandes inimigos e correligionários que agem fora do ambiente em que ele vive, como Zé Américo, João Pessoa e João Dantas, os próprios fatos lhe chegando sempre distorcidos, como o do Presidente, por exemplo, sendo morto a facadas no cabaré do cais de Santa Rita, o Zarolho — Zé Américo — mostrando no palácio as fotos de Dantas e Anayde nus.
Essas e outras coisas são ditas com a mesma verdade com que se diz que um dos personagens tem ossos valiosíssimos, de marfim, e que outro - quando pequeno -, viu um trovão ficar enganchado num pé de manga. Há um ponto em que se conta - como na Bíblia (a mãe de todos os realismos mágicos e fantásticos) - que choveu, na cidade, durante quarenta dias e quarenta noites seguidos.
O peso de O Dia dos Cachorros, além de tudo isso, é a força de uma linguagem que tem como raiz a sonoridade d'Os Sertões do Euclides da Cunha. E uma visão do mundo bastante pesada. As pessoas — diz ele — não passam de mamulengos feitos de carne, que é o material mais ordinário que se conhece. E o resto? O resto é irrequieto e entulhado, feio e sujo — e mágico. Lembra Bosch e Bruegel, cuja tônica também é a escatológica constante de referências a excrementos e sexo, aqui sempre ditos da maneira mais crua.
Bem. Aí está O Dia dos Cachorros.
Carpe diem: aproveite e leia o livro.