Ele ama uma esperança sem corpo, pensa que é um corpo o que é apenas sombra.”
Ovidio. Metamorfoses. Livro III.
Ovidio. Metamorfoses. Livro III.
A vaidade é antiga como o mundo. Rompe a barreira do tempo e nos traz o velho mito grego de Narciso contemplando-se no espelho do mundo moderno e das redes sociais, onde sentimentos muito primitivos afloram e velhas histórias encontram lugar para explicar certos comportamentos extremados.
Narciso, segundo a lenda, era belíssimo, a todos desprezava e apaixonou-se por si mesmo ao ver seu reflexo nas águas de um lago. Afogou-se ao tentar tocar a imagem amada. A história chegou a Roma e foi consagrada pelo poeta Ovidio no livro II das Metamorfoses.
Mitos carregam lições. A de Narciso é que a arrogância e a obsessão com a própria imagem levam à destruição e ao vazio existencial. É precisamente o que encontramos nas redes sociais: filtros, simulações de felicidade, personalidades artificiais e ostentação que despersonalizam e fazem perder a conexão com a verdadeira essência do ser humano. Valho-me de trechos do poema de Ovídio para nos conduzir pela jornada.
“Quantas vezes deu beijos vãos à fonte enganadora, quantas vezes mergulhou os braços na água tentando agarrar a visão e não encontrou a si mesmo.” Aplico esse trecho das "Metamorfoses" aos que seguem cegamente os chamados “influencers” (que palavra deprimente). Estes, intoxicados de si mesmos, perdem os limites e, em muitos casos, avançam para a manipulação dos espíritos mais ingênuos e confiantes, induzindo-os a erros graves, insuflando-lhes ódios, estimulando-os a idolatrar ídolos de pés de barro, receitando-lhes medicamentos, técnicas e dietas, espalhando inverdades, apropriando-se de seu dinheiro e pisoteando a sua boa-fé.
“E enquanto tenta saciar sua sede, outra sede cresce” é um verso que nos remete a uma questão importante: o que queremos com as redes sociais? Amizades novas, alguma poesia, companhia, conexão? Em busca de boas-novas, mergulhamos em uma feira que se alimenta da comparação e aos poucos inocula o vírus da vaidade. Este é sutil e diversificado, devagar contamina o organismo. Um vírus que pode atacar via aparência física, imagem intelectual ou manifestação artística.
Neste texto não estou falando de autocuidado, do desejo de se instruir ou de abraçar uma vocação adiada pelas circunstâncias da vida, mas da vaidade que perdeu os limites e distorce a visão de si mesmo. Mais uma vez a sabedoria de Ovídio vem em nosso socorro:
“Não sabe o que vê; mas é consumido pelo que vê, e o mesmo erro que o engana, também excita seus olhos. Ingênuo, por que em vão tentas capturar imagens fugazes?”
A vaidade exagerada não é apenas o amor por si mesmo, mas uma distorção do amor-próprio – algo que nos leva a buscar incessantemente a validação externa, transformando o reflexo da água no único meio de autoafirmação. Não deixa de ser trágico reduzir o ser à aparência, transformando o indivíduo em um espectador de si mesmo, sempre em busca de aplausos e admiração. Conecta-se a outro belo trecho de Ovídio: “Torna-se amante e amado; deseja e é o objeto de desejo. Ele se queima e os fogos que acende são os mesmos que o consomem.” Este trecho encapsula a essência da tragédia de Narciso e dos que mergulham na enganadora imagem que tentam projetar. Com o agravante que nos modernos tempos, a imagem virtual não encontra correspondência na realidade.Filosoficamente, a vaidade extrema pode ser vista como uma manifestação egóica. É um sinal de fraqueza, um grito de insegurança de uma alma que não encontra valor intrínseco. Em contrapartida, o verdadeiro amor-próprio nasce do reconhecimento das próprias imperfeições.
A superexposição na internet reforça, ainda, o aspecto da vaidade como construção social, imposta aos seres humanos que são encorajados a se enxergarem através dos olhos dos outros. Lembro de Simone de Beauvoir refletindo sobre esse tema em “O Segundo Sexo” e percebo que no atual contexto, o desejo foi ampliado e engolfou todos os gêneros. A vaidade nas plataformas digitais gerou um espelho distorcido que reflete as expectativas da sociedade, apagando a verdadeira essência do ser humano.
O resultado disso é um engano generalizado: da pessoa que se autoilude aos que interagem virtualmente com ela e estabelecem um relacionamento baseado em falsas premissas. De certa forma, muita gente se relaciona hoje com “influencers” sem se dar conta de que em inúmeros casos a aparência é fabricada, assim como a persona, os hábitos de vida e até as habilidades e acervos intelectuais que afirmam deter. Não deixa de ser uma forma de ingenuidade e de cegueira autoimposta em alguns casos. Novamente são precisas as palavras de Ovídio: “Ele ama uma esperança sem corpo, pensa que é um corpo o que é apenas sombra.”
Dessa forma, assistimos ao mito de Narciso ser reencenado diariamente nas redes sociais. Os filtros e curadorias de vidas perfeitas são os novos lagos onde nos contemplamos, em busca de "likes" e comentários que validem nossa existência.
Ao invés de meramente conectar, vezes sem conta as redes exacerbam a vaidade, transformando a autoimagem em um espetáculo público. Com isso, a necessidade de validação se tornou uma obsessão. Os atuais Narcisos se perdem em suas próprias imagens, modificadas para atender aos padrões irreais de beleza e sucesso. Cada postagem é uma tentativa de afirmar que a própria vida é tão vibrante e interessante quanto a dos outros. No entanto, essa constante comparação leva a uma insatisfação crônica. Sempre há alguém mais belo, bem-sucedido, feliz, talentoso ou inteligente. Este círculo vicioso alimenta uma profunda insatisfação consigo mesmo.
Tal insatisfação é um reflexo da nossa desconexão interna. Quanto mais buscamos a aprovação externa, mais nos afastamos de quem realmente somos. Ser fiel a si mesmo requer conhecer as nossas sombras, a parte de nós que rejeitamos e escondemos. A vaidade, alimentada pelas redes sociais, impede esse processo ao nos forçar a esconder nossas imperfeições e apresentar uma versão idealizada de nós mesmos. Não deixa de ser uma forma de "má-fé", uma tentativa de fugir da responsabilidade de sermos autênticos. Escondidos atrás de máscaras de perfeição, negamos nossa verdade. Tornamo-nos outra criatura, assumimos uma persona que julgamos ser mais adequada socialmente.
Para transcender tais armadilhas, faz-se necessário confrontar o vazio que tentamos preencher com aprovação externa. O desafio que se nos impõe é aprender a olhar para além do reflexo na água e contemplar a nossa verdadeira natureza, com sua carga de virtudes e imperfeições. Aceitação e reconhecimento são o primeiro passo para a verdadeira autocompreensão e amor-próprio. Remover a máscara, enfrentar vulnerabilidades e abraçar nossa humanidade mais crua pode ser o caminho para encontrar a verdadeira paz e realização, livres da necessidade incessante de aplauso. Um outro escritor, Rainer Maria Rilke, em suas "Cartas a um Jovem Poeta", oferece um conselho valioso: "Dirija seus olhos para dentro, e descubra mil mundos dentro de você." Rilke referia-se ao ofício de escritor, mas podemos ampliar a sugestão. Em um desses mundos provavelmente encontraremos a chave para desfazer a ilusão de Narciso, encontrando em nós preciosidades que não dependem do olhar alheio. Estas nos serão suficientes, mesmo que desconhecidas do mundo.