Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar.
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.
(Fernando Brandt/ Milton Nascimento - Canção da América)
Uma amiga de longas datas me telefonou e fez esta solicitação: “meu neto quer saber quais eram as minhas leituras da infância, é um dever da escola e eu não me lembro mais.” Confessou que anda um pouco esquecida e resolveu recorrer a quem lida com literatura infantil. Calculei a idade da minha amiga e fui examinar alguns livros na minha estante e me deparei com três títulos: Heidi, Poliana e Reinações de Narizinho.
Juliana Spyri, autora de Heidi, nasceu nas proximidades de Zurique, na Suiça. Esse livro fez muito sucesso entre o público infantil ocidental, principalmente entre as meninas. A protagonista é Heidi, uma pequena órfã que veio morar com o avô nos Alpes suíços. Ele tinha fama de ser um velho ranzinza e mal-humorado, mas convivendo com o avô ela descobriu que era um homem bom e inteligente. A adaptação ao novo lar foi tão exitosa que logo passou a considerar a casa do avô um verdadeiro paraíso. O deslumbramento acabou quando a tia Odete veio buscá-la para viver na cidade e fazer companhia a uma menina rica que era paralítica. Na cidade, dizia a tia, ela teria oportunidade de aprender a ler e a conviver com pessoas de fina educação. A tia pintou-lhe uma vida de bonança. Sem muita vontade de partir e deixar o avô, Heidi se foi com a tia, mas com o coração apertado, deixou a casa acolhedora do avô e a companhia do menino Pedro, seu amigo nas caminhadas pelos vales. Embora a vida na cidade oferecesse vantagens, a menina nunca se esqueceu dos ares da montanha, vivia tristonha e só recuperou a alegria quando voltou finalmente para a companhia do avô.
Poliana, livro de Eleanor Hedgman Porter, foi publicado em 1913 e se tornou um clássico da literatura infantojuvenil. Nesse livro, a autora americana apresenta como personagem principal uma menina órfã de pai que vai morar na casa de uma tia muito rica e muito severa. Poliana consegue superar a rudeza da tia ensinando as pessoas “o jogo do contente”, lição que aprendera com seu pai. Ela sempre procurava extrair alguma coisa boa e positiva, mesmo quando a situação era adversa. O sucesso do livro foi tão grande que a autora escreveu outro destinado às moças – Poliana moça, em 1915.
Nos anos 1950, havia uma separação de leitura para meninas e leitura para meninos. Os colégios de freiras, geralmente só aceitavam meninas, como era o caso do Colégio das Damas, em Campina Grande, onde minha amiga estudou. A biblioteca do colégio era toda voltada para livros que visavam a educação das meninas e das moças. Em suas estantes, não se encontravam livros como Robinson Crusoé, Moby Dick, As viagens de Gulliver, A ilha do Tesouro, esses eram indicados para os meninos.
Veio o brasileiro Monteiro Lobato e muita coisa mudou, ele escreveu livros para meninos e meninas do Brasil de forma indistinta, deu vida e voz a uma boneca de pano, Emília, que assumiu ares de protagonista em muitas histórias criadas por Lobato. Seu primeiro livro para crianças – A menina do narizinho arrebitado (1921) tinha finalidade didática e foi muito vendido pelo Brasil afora. Foi recomendado para crianças que cursavam o segundo ano do antigo curso primário. Mais tarde, em 1931, Lobato fez modificações neste livro e deu-lhe um novo título – Reinações de Narizinho. Muitos outros livros surgiram de sua pena, sempre com a presença de personagens que valorizavam a nossa cultura e nossos costumes. Criou o sítio do Picapau Amarelo, um local tão paradisíaco quanto os Alpes suíços.
Por parte de alguns educadores, principalmente aqueles ligados aos colégios religiosos, havia certa restrição aos livros de Lobato, ele era chamado de “comunista” e como Deus estava ausente de suas histórias era considerado um “ateu”, isso não impedia que os pais comprassem os livros de Lobato para seus filhos e presenteassem às crianças. Se no Colégio das Damas inexistiam livros de Lobato nas estantes da biblioteca, eles eram facilmente encontrados na Livraria Pedrosa, famosa livraria de Campina Grande que tinha como slogan: “Faça do livro seu melhor amigo”.
Filha de uma família que gostava de ler, o pai era tabelião e a mãe estudara no Colégio Santa Rita, em Areia, minha amiga conviveu com livros desde pequena e o hábito da leitura era corrente entre os irmãos. Certamente não faltavam livros de Lobato na sua casa.
Feitas essas considerações, procurei avivar sua memória e ela foi reconhecendo que esses livros fizeram parte de sua história de leitura, agora já podia telefonar para o neto e responder a pergunta que lhe fora feita.