Haveria de agradá-lo muito este título. Ararunense antes de tudo. Sabem disso os que o conheceram mais de perto ou nem tanto assim. Pois Araruna, o serrano e querido chão natal, estava em seu ser, habitava seu ser de forma profunda, declarada: nas palavras, nas memórias, nos escritos, no querer e no fazer de cada dia.
Araruna deu-lhe tudo. E ele retribuiu na mesma medida: deu-se todo a Araruna. E deu-se de uma forma mais imperecível que as obras de cal e pedra, talvez a mais perene de todas: escreveu a história da cidade, sob diversos ângulos, com o esmero que só um legítimo e amoroso filho da terra poderia ter e demonstrar. E quando fazia isso – e o fez repetidas vezes, em vários livros – não era apenas história de qualidade que produzia, mas algo além, muito além, onde o rigor da pesquisa e dos documentos se misturava ao incontrolável afeto do historiador por seu objeto, como acontece inevitavelmente quando um filho escreve a biografia de um pai ou de uma mãe. É impossível, nesses casos, sabemos, falar-se em absoluta isenção científica, se é que ela existe em alguma circunstância, até mesmo nos frios e gelados laboratórios das indústrias e das universidades.
Fico refletindo: de que outra maneira, por exemplo, poderia ter Humberto escrito a história da farmácia de seu pai, verdadeiro centro médico, político e social da brejeira urbe, para onde acorriam os aldeãos e os das redondezas, em busca da saúde e das informações (inclusive as fofocas) mais recentes e fidedignas. Humberto foi criança e cresceu praticamente dentro dessa farmácia mítica, e ela impregnou-o de tal modo que chegou a determinar sua formação acadêmica e profissional. A admiração e o respeito pelo pai farmacêutico eram imensos, derramavam-se em suas conversas cotidianas. A gente percebia como ele gostava das recordações sobre o pai, a farmácia, a cidade e os conterrâneos de seu tempo. Aquilo tudo era um mundo, o seu mundo pessoal, mais importante que Paris, Londres e Nova York. E ele estava certo, tinha toda a razão.
Aproximei-me dele na confraria hebdomadária de Mirabeau Dias, na qual, por benemerência do patrono e dos sócios, fui um dia acolhido para usufruir da conversa e da sabedoria dos confrades, tendo quase nada a dar em troca. Ali vi, por todos consentida, a natural ascendência de Humberto e de Wilson Marinho, os dois decanos do pequeno grupo sabático, depositários ambos de muita experiência e cultura, a completar o que eventualmente nos faltava. Um dia já antigo, ele levou seus amigos a Araruna, inigualável cicerone de sua aldeia, sem dúvida o melhor que poderia haver. Eu não participei dessa expedição, mas assisti ao filme em que Mirabeau registrou para sempre aquele momento especial. Humberto ia mostrando o presente e, ao mesmo tempo, contando o passado, recente e distante, com a ciência do historiador de escol e o sentimento telúrico do amantíssimo filho do lugar. Como ele estava feliz e orgulhoso então.
Saberá Araruna reconhecer o real valor desse filho ilustre? Ilustre, sim, mesmo ao largo (e além) de cargos e de efêmeros poderes? Espero muito que sim. Mas, ao mesmo tempo, receio. Pois as cidades e os povos costumam ser ingratos para com os seus verdadeiros e profundos benfeitores. Quantos exemplos dessa universal ingratidão poderíamos arrolar. A propósito, foi preciso o trabalho árduo de Humberto para ressuscitar seu grande conterrâneo, o poeta Pereira da Silva, primeiro paraibano a ingressar na Academia Brasileira de Letras, totalmente esquecido em sua própria terra. Essa obra meritória salvou o poeta do esquecimento e certamente salvará do mesmo fim o seu autor, agora transformado em referência obrigatória em qualquer estudo sobre o bardo ararunense. Esse o poder extraordinário da palavra escrita, seja na pedra, no bronze ou no papel.
Transitando da bioquímica para a história, sempre com talento e sempre discreto, Humberto chegou ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, para enaltecê-lo com sua presença operosa. E ali contribuiu especialmente para levar, entre outros, o respeitado geógrafo Modesto Siebra Coelho, um nome de peso na vida acadêmica de nosso Estado. O IHGP era uma de suas preocupações e um de seus amores maiores, ao lado da família e da terra natal.
Vindo estudar na Capital muito cedo, foi aluno fundador do antigo Colégio Lins de Vasconcelos, ainda nas instalações originais que antecederam o moderno prédio que sobrevive até hoje no largo da Igreja de São Francisco. Por isso, era também fortíssimo seu vínculo afetivo com a cidade de Nossa Senhora das Neves, da qual tornou-se um personagem atuante e incontornável.
Coloquei no início Araruna antes de tudo. Mas agora retifico. Para Humberto, antes de Araruna vinha a família, sua devoção primeira. Esse amor familial dava na vista, era anunciado explícita e implicitamente. Quantas vezes não saiu mais cedo de nossas reuniões aos sábados sob a justa alegação de que ia almoçar com a família. A esposa Carmem realçando como a grande companheira, e os filhos e netos adoçando os seus dias outonais. Teve esta felicidade – e tantas outras – o nosso amigo.
A partida desse grande paraibano e ararunense gera um vazio em lugares e em atividades diversas. É insuficiente dizer que fará falta, não fosse o clichê indesculpável. Mas que dizer e que fazer nessas horas? A vida segue, nós seguimos, enquanto Humberto sobe às alturas, de mãos limpas, ao encontro da merecida paz dos justos.