Em 1912, em Portugal, Antônio Maria José de Melo Silva César e Menezes, conde de Sabugosa, no prefácio do seu livro Dama dos tempo idos, propõe o termo estória para designar a narrativa de ficção. No Brasil, proposto por João Ribeiro e encampado por Gustavo Barroso, em 1942, o termo adquiriu popularidade e prestígio, graças, possivelmente, à publicação, em 1962, do volume de contos Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.
O termo estória não é, portanto, nenhum diacronismo como está no Houaiss, porque nasceu no século XX de uma subversão ortográfica calcada no inglês, mas, à parte o interesse metalinguístico,, não há razão para que se mantenha a distinção artificial entre história, estudo e narrativa de fatos reais, e estória, relato de ficção.
Os dicionários de Moraes Silva e Cândido de Figueiredo só registram história, com h. O primeiro apresenta o termo estorial, mas remetendo sua significação ao verbete historial, que aparece como sinônimo de histórico, com h, sem vinculação à realidade ou à ficção dos fatos narrados. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira regista estória, sem dar-lhe nenhum significado, remetendo o consulente ao verbete história, onde não há uma única menção a estória. Isso quer dizer que, se história pode significar tanto os fatos reais quanto os fictícios, não há, portanto, necessidade alguma do termo estória.
Parece-me sem sentido justificar estória com textos arcaicos, como se se tratasse de uma “ressurreição”, e não de um decalque do inglês story. Os textos arcaicos portugueses até o séc. XVI, registram estória e história, mas por indecisão ortográfica e não por uma questão de itens lexicais distintos. Isto é, estória e história representam formas diferentes de escrita de uma mesma palavra, e não formas distintas de fala. Na Crônica de D. João I, de Fernão Lopes (séc. XV), logo na primeira página aparece estórias com o sentido de relatos reais, e, na página seguinte, estoriadores, significando aqueles que escrevem e estudam os fatos reais. História Geral, com h, é o título de uma obra do séc. XIV, que figura no catálogo da livraria de El-rei D. Duarte (Cf. VASCONCELOS, J. Leite de. Textos arcaicos. 5.ed. Lisboa: Clássica, 1970, p. 52). Não havia diferença alguma de sentido entre história e estória.
A indecisão ortográfica é facilmente observável nos textos anteriores ao séc. XVI. Fernão Lopes grafa he/era (verbo ser) (p.60), ho/o (artigo), (p. 25 e 35), ell/ele (pronome) (p. 20 e 24). (Cf. LOPES, Fernão. Crónica de D. João I de boa memória e dos reis de Portugal o decimo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1977). Num testamento do séc. XII, de Elvira Sanchez, lê-se, antes do mesmo substantivo herdamento, o artigo definido grafado de três maneiras diferentes: o, hu e u (Cf. VASCONCELOS, J, Leite de. Op .Cit. p. 14-15). Na Crestomatia arcaica, de José Joaquim Nunes, só para exemplificar mais um pouco, aparecem três grafias diferentes para a palavra honra: hõrra, homrra e honra (NUNES, J. Joaquim. Crestomatia arcaica. 5.ed. Lisboa: Clássica, 1959, p. 29, 30 e 66, respectivamente). O imperfeito de haver é escrito avia ou aviia por Fernão Lopes (O.C. p. 9 e 37, respectivamente), mas era escrito havya por Azurara, na Crônica de Guinee (sec. XVI). (Cf. VASCONCELOS, J. Leite de. Op. Cit. p. 85).
O h, na ortografia arcaica, era de emprego nem sempre coerente: separava as vogais do hiato intravocabular (ex.: tehudo por teúdo), ou intervocabular (por uma questão de fonética sintática: hir por ir, hum por um), ou exercia função diferencial: he (verbo ser)/e (conjunção aditiva). Mas nem sempre o h indicava a separação de vogais em hiatos intravocabulares; era, no mais das vezes, fruto de ignorância da etimologia, pois palavras que deveriam ter h eram escritas sem h e vice-versa: ouve por houve, omem por homem, hidade por idade, etc. (Cf. VAZQUEZ CUESTA, Pilar e LUZ, Maria Albertina Mendes da. Gramática Portuguesa. 2.ed. aum. Madrid: Gredos, 1961, p. 272).
Em Os Lusíadas, Camões utiliza onze vezes a palavra história, sempre com h. Só a partir do séc. XVI cessaram as indecisões ortográficas, sobretudo após a publicação das gramáticas de Fernão de Oliveira e João de Barros, que contribuíram grandemente para a fixação da língua literária portuguesa (Cf. FONSECA, Fernando V. Peixoto. Noções de história da língua portuguesa. Lisboa: Clássica, 1959, p. 61). Do séc. XVI ao séc. XX não existe nenhum texto em língua portuguesa em que apareça uma única vez sequer o termo estória.
Em outras palavras, se a um escritor é permitido propor uma distinção ortográfica, assenhorear-se de um termo como metalinguagem científica, ou subverter a ortografia, escrevendo estória, isso não significa, necessariamente, que estória pertença ao léxico da língua portuguesa.