Certamente em função do tema que desenvolve – uma versão de como se teria urdido o mito de Jesus Cristo –, Waldemar Solha opera com alguns dos recursos que inauguraram a vertente dialógica da literatura. O presente trabalho se propõe a apontar alguns desses recursos, ligados ao diálogo socrático e à sátira menipeia, observando-lhes a pertinência linguística, em função do plano temático, e a possível eficácia literária.
O primeiro deles é o “dialogismo”, formulado segundo princípios teóricos de Mikhail Bakhtin. Os quatro evangelistas discutem o seu Cristo num teatro, cuja forma de estruturação é basicamente o diálogo. O engendramento do Libertador vai-se fazendo aos poucos, pela intervenção de cada um. Trata-se afinal de buscar a verdade, e esta (conforme postula Sócrates) não pode nascer de um só homem – está entre os homens.
Outro recurso é a “presença de heróis ‘ideológicos’”. Os evangelistas se opõem por palavras, ideias, conceitos. A aventura deles, pois, é em larga medida intelectual – mais propriamente, da imaginação, conforme refere Lucas na página 31:
“A cópia fotográfica disto que chamamos realidade não conseguiria jamais, eu sei disso, trazer à superfície este nosso Messias. Ele terá de ser o resultado de nossa disposição à mediunidade (...) que foi concedida aos artistas”.
Para destruir a dominação romana, os quatro não vão pegar em armas ou pregar em praça pública. Vão ativar reminiscências, estabelecer analogias no confronto dos diversos textos sagrados. O propósito deles, à maneira do que havia no diálogo socrático, é uma “procura e experimentação” da verdade, que se confundiria com o Verbo, a Sabedoria, o Cristo. Daí esse propósito envolver necessariamente outro recurso, a “síncrise” (oposição, antítese). Os protagonistas divergem sobre aspectos exteriores, como o porte físico e a cor dos olhos, e sobre a própria natureza da mensagem que o Messias pregará. Deve-se entender que o questionamento, no romance, antes de dizer respeito ao significado do Cristo, refere-se à existência ou não desse mesmo Cristo. Solha simula o diálogo socrático no processo de engendramento do Salvador, mas advoga a tese de que o Cristo não existiu historicamente. Seria o Messias um dos mitos solares criados, de tempos em tempos, pela imaginação de artistas sensíveis ao drama do povo.
Importa salientar que a simulação do recurso dialógico, como forma prevalente de estruturação da narrativa, não foi de modo algum gratuita. O romance enfoca um momento de ruptura da totalidade psicoemocional do homem, qual seja, o da decadência clássica e primórdios de uma nova religião. E o cristianismo instaurou a percepção e a expressão dramáticas, opostas à univocidade da epopeia e da tragédia. No drama, cuja essência é a tensão, exerce papel capital o diálogo. Privilegiando-o como forma de atuação dos evangelistas, o texto se harmoniza com o espirito em que se deu o advento cristão.
Vejamos agora recursos ligados à sátira menipeia; criada pelo escritor grego Menipo, ela procede à crítica a atitudes mentais ou de comportamento. Entre as caraterísticas desse gênero, merece destaque o chamado “fantástico experimental”. Bakhtin explica esse traço como “a observação feita de um ponto de vista inusitado (...), de onde a escala dos fenômenos é bruscamente modificada”. Trata-se de uma forma de realçar o grotesco, o disforme, o desproporcional; o artista expressa a realidade por meio de insólitos pontos de vista.
No romance, tal efeito se realiza em larga medida pelo uso de elementos tomados à linguagem cinematográfica. Isso permite multiplicar os ângulos de visão “inusitados” mediante os quais o artista transpõe o real, o que torna possível fundir todas as distâncias e todos os tempos. Como um dos objetivos do narrador é atualizar os instantes, já que a vigência dos mitos é atemporal, os processos cinematográficos, além do que representam por si, têm um valor quase simbólico.
São abundantes no texto passagens que reproduzem técnicas do cinema. A título de exemplificação, pincemos duas:
“Lucas... recuou com tal rapidez, que sua posição anterior ficou ainda um momento recuando no ar....” (p. 28);
“Eliseu, sendo visto de cima para baixo por ele (Elias), saiu correndo, aturdido com a ligação daquela travessia com a de Moisés, decrescendo na margem do Jordão, rapidamente se encolhendo na distância, sua voz diminuindo sensivelmente, ele gritando ‘Meu pai: Carros de Israel e seus cavaleiros!’”
Note-se como, neste último exemplo, o efeito de plongée instaurado com o olho/câmara de Elias é acentuado pelo uso repetido do gerúndio. Mas a influência do cinema não se manifesta somente no visualismo de algumas imagens. A própria concepção do livro é cinematográfica, pois ele aparece como uma montagem de diversos tempos e personagens históricos. A partir do diálogo dos evangelistas, espinha dorsal da narrativa, acumulam-se citações, descrições, confissões autobiográficas, mesclando-se o verbal com o icônico, a imaginação com a realidade, Jerusalém com o Brasil.
O resultado não é só um texto verbal, é um filme. E como não, se tudo é cinema? Se o Homem não é outro senão o que “fora localizado a partir de um fotograma qualquer, perdido no meio do rolo do filme inteiro que, segundo os cálculos aproximados de Einstein, tem cerca de 200 bilhões de anos-luz de extensão”? (p. 59) Outro recurso ligado à sátira menipeia que aparece no romance é a “incorporação do fantástico de aventura”. Tal expediente decorre da própria matéria de que o romancista se apropria, representada pelo cruzamento entre a história e a lenda. Reconstituindo os passos de Ciro, Jacó, Moisés, o narrador como que revive os mitos, apresentando-os nos momentos de prova pelos quais teriam sobrevivido no imaginário popular. Nessas ocasiões o fantástico se confunde com o simbólico, pois aí se representam valores e se realizam desígnios que remontam ao começo dos tempos – à voz dos profetas.
O fantástico aparece também nos desvarios apocalípticos dos evangelistas, Mateus sobretudo, que vivem na expectativa da destruição de Jerusalém. A narrativa é pontuada pela tensão desses momentos, nos quais vida e morte, passado e presente, criação e escatologia se alternam e confundem. Quanto a isso, pois, o texto parece obedecer a um secreto ritmo carnavalizador – o “pathos da decadência e substituição, da morte e renascimento”.
Citemos, por fim, a chamada “fusão de discursos”. Os argumentos de que Solha lança mão para provar a sua “tese” sobre o Cristo têm variada proveniência: livros sagrados, textos de literatura, obras historiográficas. E têm sobretudo um fundamento popular: a crença pagã na “festa do sol renascente”, que acorre por ocasião do solstício de inverno. Nessa data, “o Sol (...) aparece de volta, depois de um longo inverno, para nos salvar do Mal e das Trevas” – imagem do que, para o homem, representa a vinda do Salvador.