Este não é um texto para especialistas. É um texto didático, para aqueles que querem aprender sobre estrutura e estilística textual...

Como se constrói um texto

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Este não é um texto para especialistas. É um texto didático, para aqueles que querem aprender sobre estrutura e estilística textual; para os que querem saber como um escritor, que domina a sua arte, constrói uma estrutura bem concatenada e, utilizando referências aparentemente superficiais, as une, através de um processo estilístico, resultando numa compreensão além da superficialidade. Do alto do seu saber irretocável, os especialistas detestam textos didáticos.

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G. Doré, 1857
O escritor em questão é Dante Alighieri; o texto, o Canto XXXII do Inferno. Vamos a ele.

Como em outros Cantos – vejam-se, por exemplo, os Cantos XIX (invectiva contra os simoníacos, dirigida a três papas postados no Inferno, Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V), XXVI (invectiva contra Florença) e XXX (introdução em que se mesclam a épica e o tragédia, dando um tom elevado à Commedia) –, Dante inicia a sua narrativa com uma introdução, em que se misturam as invectivas e apóstrofes, acompanhadas de ironia, de comparações e de invocações, que podem ser dirigidas aos cidadãos, aos leitores (v. Canto XX) ou às Musas (Canto II, versos 7-9; Canto XXXII, versos 10-12).

No Canto XXXII, objeto de nosso estudo, vemos que a introdução (versos 1-15) se assemelha, em parte, ao Canto XXVIII, iniciando com um recurso retórico chamado de captatio benevolentiae, que consiste em obter do leitor ou do auditório a simpatia para a fala do orador ou para o texto do escritor. Nesse aspecto, Dante é sutil, porque o modelo é, sem dúvida, Homero, conforme se pode ver no Canto XXVIII, falando da dificuldade de narrar o que se vê (versos 1-6). A diferença que se pode estabelecer com relação a Homero (veja-se a segunda Invocação à Ilíada, no Canto II, versos 484-493) é que o poeta grego cria um narrador afastado do fato, seja no tempo, seja no espaço.
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G. Doré, 1857
O narrador da Ilíada conta a história seguindo a inspiração das Musas, que lhe trazem a matéria narrativa que se encontra na tradição, na memória. Trata-se, pois, de fato acontecido, já passado. A situação de Dante é diferente. O autor florentino cria uma narrativa, em que ele se coloca como o narrador de uma viagem inusitada, através do inferno, algo que só foi realizado por Eneias (Eneida, Livro VI), daí a explicação de Virgílio ser o seu guia (duca), seu mestre (maestro) e o seu professor (dottor), na travessia do Inferno. Desse modo, Dante não narra o acontecido, mas o que está acontecendo, o que está se desenrolando diante de seus olhos. Homero é o narrador de ações acabadas; Dante, o de ações em processo. Um ótimo exemplo, para quem quer estabelecer diferenças entre o que é o perfectum e o infectum.

O impacto entre narrar o acontecido e o que está acontecendo é diferente, apesar de os dois poetas se verem com a mesma dificuldade de expressão, com relação à distância entre o pensamento, a fala e a escrita. O pedido de ajuda às Musas, no caso de Dante, demonstra esse obstáculo homérico (em todos os sentidos...), em busca da melhor expressão para se dizer o que se deve dizer. Por outro lado, vemos como há uma diferença entre o que está no plano mítico (Ilíada)
Da angústia inicial, vem a lição de que, em síntese, não é com a linguagem referencial ou com uma linguagem melíflua que se constrói a literatura, mas com uma linguagem nova.
e o que está sendo narrado como uma verdade a servir de lição aos que desconhecem as consequências de suas ações (Inferno), ainda que, metaforicamente, Dante se utilize da invocação às Musas e de um fato mítico, quer seja a construção das muralhas de Tebas por Anfíon, usando a sua cítara para colocar as pedras umas sobre as outras. A referência a Tebas, a que se associa a ação das Musas, é de extrema importância neste Canto XXXII, conforme veremos adiante.

Para que se perceba melhor a construção de Dante, reproduzo, abaixo, a introdução do Canto XXXII (versos 1-15, em tradução operacional nossa):

Tivesse eu rimas ásperas e golpeantes como conviria ao triste buraco sobre o qual se apoiam todas as outras rochas, eu exprimiria do meu conceito o sumo mais plenamente; mas como não as tenho, me conduzo, não sem temor, a dizer; pois não é empresa sem dificuldade descrever a fundo todo o universo, nem com língua que chame mamãe ou papai. Mas que aquelas damas ajudem o meu verso, como ajudaram Anfíon a cercar Tebas: assim como do fato o dizer não seja diverso. Oh, plebe, sobre todas, mal gerada, que estais no lugar onde falar é duro, melhor fôsseis aqui ovelhas ou cabras!

Contextualizemos. Dante e Virgílio, tendo saído do Décimo Bolsão do Oitavo Círculo, chegam finalmente ao Nono Círculo, o último do Inferno, não tão complexo, quanto o anterior, mas que se divide em quatro Zonas, onde se encontram os traidores de diversas ordens: da família, da pátria, dos hóspedes e da religião. Por óbvio, o último Círculo é o local mais profundo que pode existir no Universo, levando-se em conta o sistema ptolomaico, que coloca a Terra como o centro de tudo. Nessa profundidade suprema, onde começa a enorme penedia, que vai se fazendo rocha até a entrada, na superfície, ali estão os dois, colocados pelo gigante Anteu (Canto XXXI),
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G. Doré, 1857
iniciando o termo de sua viagem, diante de novas situações de punições e de novos punidos. Apesar de tantas cenas horríveis presenciadas, o Último Círculo do Inferno ainda é capaz de arrancar de Dante um equivalente ao horresco referens virgiliano, ao encarar o admirável que se tem a expressar. O problema é como aproximar a visão da expressão, diante do mirabile dictu.

É nesse momento que Dante começa a desvelar o seu conhecimento sobre o escrever. Qual seria a expressão mais conveniente para dizer o que se testemunha? Não esqueçamos que ele se encontra no Inferno para ser testemunha de fatos que deverão ser relatados a todos os vivos, pela sua “experiência plena”, adquirida durante a viagem (esperïenza piena, Canto XXVIII, versos 48-51).

Na impossibilidade de uma expressão que corresponda exatamente à visão, o poeta diante do fato de não poder contar com rimas ásperas e chocantes ou golpeantes (rime aspre e chiocce), apropriadas ao momento e ao local, busca, ainda assim dizer, mesmo temeroso, por se tratar de uma empresa difícil que não pode ser realizada apenas de modo extremamente duro ou com língua de criança (né da lingua che chiami mamma o babbo). Para uma nova experiência, uma nova língua. Eis o segredo da criação literária. Daí a necessidade da intervenção das Musas, as divindades olímpicas, que, menos do que seres míticos,
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G. Doré, 1857
aqui são vistas como a inspiração, o dom que habita os poetas, fazendo-os intentar a harmonização entre fundo e forma. Da angústia inicial, vem a lição de que, em síntese, não é com a linguagem referencial ou com uma linguagem melíflua que se constrói a literatura, mas com uma linguagem nova. Esta é a primeira lição. Escusado dizer que “as rimas ásperas e golpeantes” lição, inclusive, para Camões, no Epílogo de Os Lusíadas (Canto X, estrofe 145), serão usadas pelo poeta, ao longo do poema, mas não serão elas que farão a essência do poema. Elas complementarão apenas o sentido horrífico do fato que se quer narrar: uco, uro, icchi, isto, etti, ecchi, ombra, este, etta, ora, ote, olti, occa, eschi, era, uca.

Ressaltemos que o mito de Anfíon, referido no verso 11, é apresentado por Horácio, na sua Epistola ad Pisones, mais conhecida como Arte poética (Ars poética, versos 394-6), no momento em que o poeta latino ministra ensinamentos sobre a poesia ao mais velho dos irmãos da nobre família romana dos Pisões. E a lição principal é que ao poeta não se concede ser medíocre (mediocribus esse poetis non concessere, versos 372-3), embora quem não sabe fazer versos ouse fingir sabê-lo (qui nescit versus, tamen audet fingere, verso 382). Mais claro não pode ser o recurso metapoético de Dante.

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G. Doré, 1857
A segunda lição começa com a narração, ao chegarem os dois poetas, no “poço escuro” (nel pozzo scuro, verso 16), na Primeira Zona do Nono Círculo, a Caína (Caina), onde se encontram os traidores da família, com Caim emprestando o nome ao local. Eles estão presos no lago de gelo do Cocito, um dos rios do Inferno. A visão dos condenados por Dante nos dá a dimensão da importância das guerras intestinas e fratricidas na Itália, envolvendo os Guelfos e os Gibelinos, tendo na batalha de Montaperti, um dos pilares de sustentação. Vamos, contudo, inicialmente, aos traidores da família.

Dante sabe, por outro condenado, Camiscion de’ Pazzi, quem são os dois condenados que estão jungidos, quais bois na canga. São dois irmãos, o gibelino Napoleone e o guelfo Alessandro, que se mataram pela herança do pai, o conde Alberto de Mangona. Já Camiscion de’ Pazzi aguarda o irmão Carlin de’ Pazzi, que deverá ir para uma zona mais abaixo,
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G. Doré, 1857
por ser um traidor da pátria. Guelfo branco, Carlin vendeu-se aos guelfos negros, permitindo que os refugiados florentinos fossem entregues nas mãos dos inimigos. O condenado ainda se refere a Sassol Mascheroni, assassino do sobrinho Ubertino, para herdar os seus bens.

Na caminhada para a Segunda Zona, a Antenora, onde estão os traidores da pátria, a batalha de Montaperti vem à tona, mais uma vez (veja-se, por exemplo, o Canto X). A zona tem o seu nome inspirado no troiano Antenor, acusado de trair seus compatriotas, por ocasião da guerra contra os gregos. A batalha de Montaperti surge como símbolo maior das guerras fratricidas. Tendo acontecido em 1260, entre Florença e Siena, a batalha envolveu guelfos e gibelinos, resultando na morte de mais de dez mil pessoas e na derrota dos guelfos de Florença. É um momento peculiar dentro do Inferno, demonstrando uma agressividade de Dante contra o condenado Bocca degli Abati, nobre florentino. No início da batalha de Montaperti, Bocca lutou ao lado dos guelfos, mas depois bandeou-se para os gibelinos. Há uma violenta altercação entre Dante e Bocca, que tem os cabelos arrancados pelo poeta. A relação dos traidores é longa, como Buoso da Duera, Tesauro de Beccheria, Gianni de’ Soldanier, Gano di Maganza, o Ganelonni, personagem das gestas do ciclo carolíngio, e Tebaldello Zambrasi, todos traidores da pátria. À saída da Antenora, em direção à Ptolomeia (Tolomea), Dante e Virgílio encontram dois personagens, agarrados, comendo um o pescoço do outro. É aí que entra uma referência a Tideu e a Melanipo, mitos gregos.

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G. Doré, 1857
Saberemos que os dois personagens que estão envolvidos numa situação de canibalismo são o conde Ugolino e o arcebispo Ruggiero, abordados no Canto seguinte. A comparação com Tideu e Melanipo se dá pelo confronto entre os dois heróis no episódio mítico, anterior à guerra de Troia, conhecido como Os Sete contra Tebas, que se torna uma tragédia de Ésquilo, do mesmo modo que uma de Eurípides, com o nome de As Suplicantes. Tideu, o herói grego, pai de Diomedes, não se conforma apenas com a morte de seu contendor, Melanipo, a quem enfrenta diante da Proitos, uma das sete portas de Tebas, mas desafiando os deuses, ousa comer a sua carne. A fonte de Dante, no entanto, para a referência ao episódio de canibalismo deve ser o poeta Estácio, em cujo poema épico Tebaida,
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narra-se a cena com crueza (Cantos VIII e IX). É de se pensar em Estácio, tendo em vista que, além de Virgílio, haverá outro guia para Dante, no Purgatório: o próprio poeta Estácio, com quem eles se encontram a partir do Canto XXI.

É hora de juntar as peças: referência a Tebas, aos dois irmãos, Napoleone e Alessandro, que se matam pela herança paterna; à guerra fratricida entre guelfos e gibelinos, e, por fim, a Tideu e Melanipo, no encontro dos dois últimos condenados, no final da Antenora, dando acesso à Ptolomeia. Atente-se para o fato de que Tebas é referida no início e no final do Canto XXXII, não sendo também a primeira vez que Dante faz alusão ao episódio dos Sete contra Tebas (vejam-se, por exemplo, os Cantos XIV, versos 63-72, alusão a Capaneu; XX, alusão a Anfiarau; XXV, nova alusão a Capaneu; XXVI, alusão a Etéocles e a Polínice; XXXIII, a cidade de Pisa, por sua crueldade com o conde Ugolino e seus filhos e sobrinhos, é chamada de Nova Tebas). Neste Canto XXXII, fica explícito, para os que não haviam atentado para o fato, o uso do episódio mítico, envolvendo sete heróis argivos, liderados por Polínice, contra sete heróis tebanos, liderados por Etéocles.

É a leitura que faz aquele que tem pendor literário transitar por entre as várias linguagens, apreendê-las, imitá-las, reescrevê-las, para dar o grande salto de recriá-las.
Os dois irmãos, filhos de Édipo e Jocasta, lutam entre si pela herança do pai, que havia proposto um rodízio de ambos no poder. Com a usurpação do poder por Etéocles, Polínice vai juntar um exército para assediar as sete portas de Tebas. Não será dessa vez que Tebas sofrerá a destruição. Mesmo com a morte da maioria dos heróis, incluídos os dois irmãos, que se matam diante da sétima porta, Tebas consegue escapar ao assédio e à destruição. No entanto, ficando sob o poder de Creonte, Tebas vai se enfraquecer, ao ponto de não resistir ao ataque dos Epígonos, os filhos dos sete heróis anteriores, dentre eles Diomedes e Estênelo, filhos de Tideu e Capaneu, respectivamente, heróis presentes na guerra de Troia (v. Ilíada, Canto IV). O episódio mítico tebano, portanto, que vai sendo referido ao longo dos 34 Cantos do Inferno, encontra o seu auge, neste Canto XXXII, constituindo-se como espelho, como base metafórica para Dante falar da ambição
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G. Doré, 1857
do poder material e político, que levará às guerras fratricidas entre guelfos e gibelinos, e entre os próprios guelfos, o seu partido, que se divide em duas alas, os brancos e os negros.

Este Canto XXXII é uma demonstração cabal de como se forma o grande escritor. Dante não se utiliza apenas de personagens reais, particularmente da Toscana, o que faz deste Canto o mais pessoal de todos, com dez personagens toscanos, em treze citados. Ele se utiliza também de personagens literários, como Mordrèc (verso 62), da História de Lancelot, filho do rei Arthur, morto pelo pai por sua traição, e de Gano di Maganza, dito Ganelo ou Ganellone (verso 122), personagem de La chanson de Roland (século XI), que trai o rei Carlos Magno, informando aos árabes as posições das tropas francas, na batalha de Roncesvales. A alusão a Tideu e Melanipo é o cume desse recurso, para revelar que ficção e realidade são duas faces de uma mesma moeda. E quando fazemos a devida análise, constatamos ser um elemento estrutural da narrativa o que, aparentemente, era simples alusão a um episódio mítico. Não há escritor sem ser leitor.

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G. Doré, 1857
Uma palavra final. É a leitura que faz aquele que tem pendor literário transitar por entre as várias linguagens, apreendê-las, imitá-las, reescrevê-las, para dar o grande salto de recriá-las, em novas linguagens. É assim que Dante, com a sua Commedia, cria uma grande obra para a humanidade, em que mito e realidade se aliam, na construção de uma ficção, cuja essência é a experiência vivenciada por Dante, transfigurada em forma de um poema narrativo. O poeta, no entanto, vai além, criando também a língua comum, a vulgar eloquentia, que acabará por resultar na língua que une todos os italianos. Aprendamos com quem sabe fazer.

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  1. Ângela Bezerra de Castro31/8/24 11:00

    Mil, li três vezes seu texto de hoje. Completamente encantada com sua profundidade didática. Você fala de Dante com uma intimidade que resulta em verdadeira tradução do poema, permitindo o acesso do leitor não iniciado. Nunca vi nada igual. Somente no velho Liceu, nas aulas de professor Gibson Maul de Andrade, vi algo semelhante, no acesso que ele nos dava aos Lusíadas, em suas aulas geniais. Você inaugura na APL uma nova era. Mesmo que nossa casa tenha uma tradição de professores, clássicos e latinistas, você é incomparável em sua erudição e didática, e chega a ser comovente em sua dedicação à causa da cultura. Quando eu o chamo de fenômeno, não é um elogio. É a constatação da verdade e de uma grande admiração. Hoje, eu me angustio, supondo que não existem os alunos que correspondam à grandeza de suas aulas.

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  2. Obrigado, Ângela! Apenas continuo sendo professor, profissão que escolhi aos 11 anos, na Escola Industrial, depois Escola Técnica, e não me arrependo.

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