O envelhecimento de tudo que é vivo marca a gradativa vitória de Tânatos sobre os viventes. É inevitável, sabemos nós, eternos aprendizes da finitude. Aceitar isso com alguma naturalidade é sabedoria, pois de que adianta qualquer revolta e irresignação? Entretanto, dentro do possível, e mesmo sem se mostrar, Eros luta contra Tânatos até onde pode. É inevitável também, pois é da natureza de tudo que vive querer permanecer vivo, pelo menos até onde der. Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte, como dizem os psicanalistas, as duas forças vitais que nos regem e se combatem mutuamente.
Eros e Tânatos é o título do livro de poemas de Darcy Ribeiro, homem que, atingido por grave doença, lutou bravamente pela vida, vida que tanto gozou até o fim. Era um dionisíaco, na plena expressão da palavra. Amou, bebeu, comeu, viajou, estudou, escreveu, falou e agiu intensamente, como poucos. Mas, claro, não conseguiu fugir aos ditames implacáveis da transitoriedade, mesmo tentando exorcizá-los através da palavra escrita, poderosa e inútil simultaneamente, nesse caso.
Também no octogenário poeta Drummond as duas pulsões lutaram de forma tenaz. Ele, sabe-se, foi muito sensual, cultivou o sexo da infância à velhice, mas sempre discreto, mineiro até a derradeira célula. Foi muito cioso de sua respeitabilidade pública e privada. Namorou e teve casos sem ostentar, mas também sem esconder. Certa vez o vi a passear tranquilamente com a namorada em Ipanema. Era já um ancião, mas muito digno e elegante, de blazer. Fiquei parado, embevecido, vendo-o passar por minha muda admiração, devagarinho.
O itabirano morreu em 1987, aos 84 anos. Os dois últimos livros seus publicados em vida foram Corpo, de 1984, e Amar se aprende amando, de 1985. Postumamente, foram publicados O amor natural, de 1992, e Farewell, de 1996. Nestas quatro obras crepusculares, a presença de Eros é marcante, até no título de três delas: Corpo, Amar se aprende amando e O amor natural. Em todas, Tânatos também se faz presente, como seria inevitável, dada a provecta idade do poeta. Mas a força erótica é imensa e decerto representa, artística e psicanaliticamente, o duelo extremo entre uma vida que conscientemente se esvaía e a morte que se aproximava, de modo inapelável. Manifestando-se a respeito, o crítico e também poeta Affonso Romano de Sant’Anna, cuja tese de doutorado teve a poética drummondiana como tema, disse que era “como se Eros estivesse jogando sua última cartada contra Tânatos”. E era mesmo, não há dúvida.
Drummond era complexo. Dionisíaco e apolíneo ao mesmo tempo, era um na alcova e outro fora dela. Quem não soubesse, jamais adivinharia no reservado e tímido funcionário público o sátiro refinado, cultor das delícias sensuais. Tudo isso o fez conhecer e compreender melhor o amor em suas várias dimensões, e tudo isso ele levou para sua poesia, enriquecendo-a com a moeda inestimável da vida vivida. Afinal, quem melhor pode falar e escrever sobre Eros senão quem o conhece pessoalmente?
O itabirano escreveu seus poemas eróticos aos poucos, sem pressa, provavelmente ao sabor de suas experiências reais. Inicialmente, dizem, não pretendia publicá-los, por muitas razões. Havia, entre outros, o justificado temor de chocar seus leitores com uma insuspeitada “libertinagem” por parte de quem, até então, mostrara-se tão sóbrio, metafísico – e até pudico. A crueza da carne fruida sem pudor talvez não fosse bem aceita por alguns mais comedidos – ou hipócritas. Drummond era sábio e levava em conta tudo isso. Mas o tempo e a própria evolução dos costumes fizeram seu trabalho e o poeta cauteloso começou a publicar em revistas o que em livro só sairia em 1992, praticamente cinco anos após a sua morte, sob o título O amor natural. Importante ressaltar que no erotismo drummondiano não há obscenidades nem vulgaridades nem pornografia. Há poesia, o trabalho com as palavras, a descoberta do lírico nos atos e acontecimentos mais banais do cotidiano, mesmo aqueles que ocorrem na alcova (mesmo que tenha escrito que “O que se passa na cama/ é segredo de quem ama”). Em tudo, o olhar e a sensibilidade do poeta, sempre o poeta, sobrepondo-se ao homem, ao varão, ao amante. Não fosse assim, teríamos apenas um relatório burocrático ou jornalístico sobre jogos sensuais e não uma fina obra poética, resistente ao tempo e universal.
Os críticos já registraram a presença de Eros em Drummond desde o primeiro livro, Alguma poesia, de 1930. Lá já estão as pernas das mulheres que passam no bonde, os corpos enrolados e que se penetram e a lavadeira morena que iniciou amorosamente o menino itabirano. E assim praticamente em toda a sua obra em versos, com destaque para os livros derradeiros, quando Tânatos já se aproximava do ancião reclamando seu lugar.
Em Farewell (Despedida), livro póstumo de 1996, vê-se a derrota final de Eros, como não poderia deixar de ser. Está lá, no poema “Restos”, quatro versos que dizem tristemente a triste realidade do ocaso:
Restos
O amor, o pobre amor estava putrefato. Bateu, bateu à velha porta, inutilmente. Não pude agasalhá-lo: ofendia-me o olfato. Muito embora o escutasse, eu de mim era ausente.
No final melancólico, o poeta que tanto amara reconheceu que para ele o amor estava não só morto, mas decomposto; não podia mais atendê-lo, mesmo que o escutasse a bater à porta. A partir daí, para ele, valeria a pena viver? Provavelmente, não. E deve ter sido por isso, e mais a perda recente da única filha amada, que o fez pedir, em sua derradeira internação hospitalar, que lhe receitassem “um infarto fulminante”.O amor, o pobre amor estava putrefato. Bateu, bateu à velha porta, inutilmente. Não pude agasalhá-lo: ofendia-me o olfato. Muito embora o escutasse, eu de mim era ausente.
Transcrevo a seguir um dos últimos poemas de seu livro de despedida (Farewell), resumo de uma vida e de uma obra notáveis, derradeiro recado enviado a Eros e a Tânatos, deuses de seu particular Olimpo destroçado:
Sono Limpo
Não mais o sonho, mas o sono limpo de todo excremento romântico. A isso aspiro, deus expulso de um Olimpo onde sonhar eram versões de existir. Não à morte: ao sono que petrifica a morte e vai além e me completa em minha finitude, ser isento de ser, predestinado ao prêmio excelso de exalar-se. Não mais, não mais o gozo de instantes de delícia, pasmo, espasmo. Quero a última ração do vácuo, a última danação, parágrafo penúltimo do estado – menos que isso – de não ser.
Não mais o sonho, mas o sono limpo de todo excremento romântico. A isso aspiro, deus expulso de um Olimpo onde sonhar eram versões de existir. Não à morte: ao sono que petrifica a morte e vai além e me completa em minha finitude, ser isento de ser, predestinado ao prêmio excelso de exalar-se. Não mais, não mais o gozo de instantes de delícia, pasmo, espasmo. Quero a última ração do vácuo, a última danação, parágrafo penúltimo do estado – menos que isso – de não ser.