Carlinhos foi falar com Deus assim sem mais e nem menos. Como dizem, bateu com as dez. Morte bem morrida na birosca de Toninho Malvade...

Carlinhos Cachaça

restaurante barzinho cachaca
Carlinhos foi falar com Deus assim sem mais e nem menos. Como dizem, bateu com as dez. Morte bem morrida na birosca de Toninho Malvadeza. Estava ele lá tomando das suas e jogando conversa fora quando emborcou sobre a mesa e deu com a cara num prato de cuscuz com nacos de bode que acabara de pedir. Nem deu tempo de provar o pitéu que Dalvinha lhe servira. Parou de respirar e sua história de vida acabou ali.

Estou aqui tomando o tempo de meus leitores e leitoras, porque acho que Carlinhos Cachaça merece que eu rabisque umas linhas em sua memória. O apodo colado ao nome desse meu parça sugere que nosso amigo
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seria um alcoólatra. Não é bem assim, porque alcoólatra é aquele que é viciado em cachaça ou similares. Não é o caso de Carlinhos. Este era apaixonado! Isso mesmo, apaixonadíssimo por essa tal de água que o passarinho não bebe. Haveremos de convir que apaixonado é uma coisa e viciado é outra bem diferente. Quem é viciado não tem o mínimo respeito por aquilo lhe estimula e conserva a desvirtude. O apaixonado é de outro jaez. Precisavam só ver com que cortesia e acatamento Carlinhos colocava goela abaixo uma talagada da malvada. Era todo um ritual. Erguia aquele copinho que só um cachaceiro raiz conhece e, como o pároco ergue a taça de vinho para a consagração da hóstia ia dizendo: “Bendito sejas tu néctar sagrado que vem em socorro de minha alma aflita”. E colocava a “água benta” garganta adentro. Tinha respeito.

Saibam que nosso defunto em questão foi sempre criatura boa de conversa, não era o bêbado chato que fala cuspindo e não tem controle sobre o que diz. Carlinhos não, era bebum com alguns fumos de nobreza, elegante, voz empostada, dizia chistes com os quais a plateia presente se deleitava. Sabia conduzir a narrativa de uma anedota, breve e com uma surpresa no final.

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Vez ou outra frequentei alguma roda de amigos para molhar a palavra. Nesses ambientes, a chegada de Carlinhos Cachaça era recebida até, digamos, com certa euforia. “Meus nobres”, dizia sempre ao surgir devidamente calibrado. O que mais me impressionava nessa criatura era a forma dela ver a política, a religião, o mundo enfim. Vou citar algumas dentre muitas de suas propostas para dar uma ajeitada nessas mesmices com as quais estamos acostumados a conviver. Vejamos algumas.

Católico, deixou de ir à missa por não achar justo usar vinho para simbolizar o sangue de Cristo. Certo, segundo ele, seria a cachaça para denotar o suor do Nazareno. Nada de lembrar do padecimento de Nosso Senhor na cruz, nada de sangue. Devíamos sim recordar que nosso Salvador,
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quando este esteve em retiro pelo deserto suou como uma tampa de cuscuzeira resistindo naquele calor insano às tentativas de sedução por parte do Tinhoso. Não é justo então o simbolismo do suor?

Na política seriam outras suas metas de inclusão social. Para Carlinhos não faltavam moradias no país, faltavam sim botequins, bares, biroscas, mosqueiros, tavernas. O governo devia criar um novo programa mais abrangente que atendesse aos anseios da galera que gosta de uns gorós. Que tal o “Meu bar, minha vida”?

No âmbito da saúde manteria o “Farmácia Popular”, mas acrescentaria aos medicamentos o “Engov” para combater ressacas e o Epocler para dar uma calibrada no fígado da rapaziada.

Introduziria o “Vale Torresmo”. Era só chegar no botequim entregar seu ticket e receber uma porção daquela tentação à pururuca. Coisa de lamber os beiços. Não iria faltar o “Bolsa Cachaça”, Todo brasileiro, maior de idade, com renda familiar inferior a dois salários mínimos teria direito mensalmente a 15 litros da branquinha produzida pela estatal Canabrás.

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Nosso amigo Carlinhos era cheio dessas teorias, mas não deu certo na política e não pode ver seus devaneios irem além de sua falação. Chegou a ser candidato a vereador e só teve 9 votos, contando com o dele. “Nossa classe é muito desunida É por isso que o Brasil não vai pra frente”, reclamara ele na ocasião.

Ontem fui às exéquias de Carlinhos. Pouca gente viu nosso camarada dar partida naquela viagem sem retorno. Quem esteve lá? Toninho Malvadeza, sua funcionária Dalvinha, Pedro Serrote, Bastião da Madalena, eu e mais uns dois ou três. Daqui a uns dias ninguém mais se lembrará dele. Fica então aqui, Carlinhos, meu preito de gratidão através desses rabiscos. Pode ser que o mundo do jeito que você pensava não desse certo. Mas talvez fosse mais divertido do que esse nosso aqui, muito sem graça e difícil de suportar.

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