Conta Otto Lara Resende que Guimarães Rosa gostava de dar o seguinte conselho aos seus amigos escritores: “Não fabriquem biscoitos, ...

Biscoitos e pirâmides

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Conta Otto Lara Resende que Guimarães Rosa gostava de dar o seguinte conselho aos seus amigos escritores: “Não fabriquem biscoitos, fabriquem pirâmides.”. Referia-se o autor de Grande Sertão: Veredas provavelmente a obras semelhantes ao seu célebre livro. Obras importantes, definitivas, de preferência volumosas. Rosa gostava de livros grossos, que ficassem de pé sozinhos. Vejam só. Como se fosse fácil fabricar pirâmides. Como se dependesse apenas da vontade e do esforço do escriba. Quantas pirâmides não teríamos se fosse assim tão simples...

Os biscoitos são os contos, as crônicas, os artigos, as miudezas literárias que tendem a passar ligeiro sem deixar rastro, segundo Rosa. Por esse critério, Rubem Braga e o nosso Gonzaga Rodrigues foram e são biscoiteiros.
Fontes: Ytube + Wikimedia
Antonio Maria e Sérgio Porto também. Mas será assim mesmo? Talvez seja possível erguer uma pirâmide de biscoitos. Será?

O próprio Rosa começou fazendo os biscoitos de Sagarana. Finos biscoitos, é verdade, mas biscoitos. E Dalton Trevisan só fabrica biscoitos? Os faraós serão apenas os construtores de vastos romances? Veja-se o perigo das classificações. E no entanto não podemos passar sem elas, pois são a maneira de pormos uma certa ordem no caos, para melhor entendê-lo. O homem é realmente um animal que classifica. E tem um orgulho danado em fazê-lo, como se classificando ele se tornasse mais senhor da confusa e enganosa realidade.

Bom, o fato é que a literatura não é feita somente de pirâmides. Aliás, seria até entediante se assim fosse. Onde ficaria, por exemplo, a leveza das crônicas? E a concisão dos contos, romances em miniatura? Creio que nem os mais talentosos escritores, capazes de levantar monumentos, aguentariam tamanha pressão de a todo tempo estar trabalhando em obras colossais.

João Guimarães Rosa ▪ 1874—1952
Mas voltemos a Rubem Braga, que só escreveu biscoitos, digo, crônicas. Quem poderá negar a alta qualidade literária de sua obra? Tanto é assim que ficou – e continua a ficar, com sucessivas reedições de seus livros. Não duvido se ele for mais lido do que Guimarães Rosa. O que certamente seria visto por este como um equívoco ou até um absurdo. Mistérios da literatura.

O problema, penso, é que o leitor, o leitor dito comum, não especializado, nem sempre está disposto a escalar montanhas, preferindo caminhar na planície ou, no máximo, subir uma simples colina. E por falar em montanha, lembremos a Montanha Mágica,
Thomas Mann ▪ 1875—1955
do alemão Thomas Mann, ganhador do Nobel de Literatura. Quantos leitores se dispõem a enfrentar suas consagradas pirâmides, como Os Buddenbrooks, Doutor Fausto e José e Seus Irmãos? Mann, como se sabe, foi um verdadeiro faraó, gostava de escrever livros extensos. Mas o interessante é que, talvez por ironia da vida, sua obra mais conhecida e consumida é a pequena joia Morte em Veneza, uma novela de menos de cem páginas. Seria um biscoito?

E como ficariam as editoras e as livrarias se não fossem os biscoitos? Sobreviveriam apenas à base de pirâmides? Duvido. Geralmente, sabemos, até pelo tamanho, as tais pirâmides são indigestas para o leitor mediano, desprovido de instrumentais teóricos e críticos para saber degustá-las com prazer. Esse leitor, que sustenta escritores e todo o complexo negócio do livro, gosta mesmo é de biscoito. O que não quer dizer, evidentemente, que ele não sabe apreciar as qualidades de um texto, diferenciando-o do lixo impresso que abunda por aí.

E o nosso Gonzaga, fabricante aldeão de finas iguarias em forma de crônicas? Por acaso, iremos avaliá-lo por baixo só por conta de seus personalíssimos biscoitos? Jamais, pois ele é de fato um escritor, um grande escritor, como sabemos. Possui indubitavelmente recursos literários para se aventurar na seara do romance, mas não quis.
Gonzaga Rodrigues
O máximo que se aproximou de uma pirâmide rosiana foi com seu primoroso Retrato de Memória, cem páginas da mais talentosa prosa memorialista, que, como bem salientou alguém que agora não lembro, talvez Crispim ou Ângela Bezerra, não faz vergonha se comparada a Infância, de Graciliano Ramos. E tal comparação vale, por si mesma, como uma consagração, não é mesmo?

Outro paraibano que fabricou finíssimos biscoitos, no melhor sentido da palavra, foi Juarez da Gama Batista. Sua obra consiste em mais ou menos pequenos ensaios críticos, de uma qualidade reconhecida nacionalmente e que ele publicava como precários folhetos ou algo parecido, pela editora da UFPB ou de A União. Mas será menor o mestre por causa disso? Claro que não.

Mário de Andrade um dia disse ou escreveu a Carlos Lacerda que ele seria o maior escritor do país se renunciasse ao brilho fácil. Ou seja, se abandonasse a política, os discursos, as polêmicas jornalísticas, e se dedicasse exclusivamente, com afinco, às letras literárias. Ele não renunciou, pois amava demais o brilho mundano, e assim passou a vida fabricando biscoitos. Até que perto de morrer, como se adivinhasse que não teria mais tempo, ele finalmente levantou uma pirâmide indiscutível:
Carlos Lacerda ▪ 1914—1977
A casa de meu avô, obra-prima da língua portuguesa que conseguirá atravessar os séculos, dando ao controverso tribuno a verdadeira glória que tanto buscou em vida, assim como buscou também o poder. Mas este, manhoso, fugiu-lhe entre os dedos, como água ou areia, enquanto que aquela foi alcançada, sem dúvida, no resgate definitivo da velha casa avoenga de Vassouras, através da ficção e da memória, ambas misturadas com requintada arte, como só sabem fazer os grandes mestres da literatura. As raras e difíceis pirâmides às vezes tardam – mas chegam. E basta uma, não mais que uma, para garantir a posteridade.

O fato é que de biscoitos e de pirâmides se faz a literatura. O velho Rosa, com sua distinção espirituosa mas radical, foi muito exigente e talvez um pouco preconceituoso com as obras menos piramidais. Hoje em dia, como leitor, sou cada vez mais um declarado fã de bons biscoitos. E, até pela idade, já não me atraem os esforços das grandes escaladas.

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  1. Obrigado, Raniery.

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  2. Então descobri que sou um biscoiteiro e um apreciador de biscoitos, mas também de pirâmides. Ótimo texto, Gil. Não sabia dessa existência desse livro do Carlos Lacerda. Abraços!

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  3. Obrigado, Leo.

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  4. Li a Montanha Mágica e levei um certo tempo para finalizar a leitura . A obra me marcou bastante. Hoje, amo os biscoitos , em todos os sentidos, e ainda encaro uma pirâmide de vez em quando. Aprendo muito lendo seus textos, Gil Messias; tem leveza e profundidade. Obrigada por nos oferecer mais esse presente. Tem a minha admiração! Sou sua fã. Um grande abraço!👏🏻👏🏻👏🏻

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  5. Denise Carvalho

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