O que esperar de um poeta que intenta trabalhar a sua poesia optando pelo caminho da forma fixa tradicional, utilizando-se de métrica e de rima? Espera-se que, pelo menos, ele tenha um domínio do assunto. A pergunta retórica inicial tem a intenção de, mais uma vez, abrir caminho para uma abordagem sobre a poesia de Augusto dos Anjos. Dentre tantas coisas que, a respeito do poeta, já não têm sentido discutir, como a sua filiação estética ou a cediça afirmação de cientificismo, também coloco na conta das inutilidades afirmativas, com cara de grande importância, a discussão da forma ou da estranheza
do verso e da sua sonoridade, a menos que se vá fazer um trabalho aprofundado sobre cada uma dessas, digamos, características.
Augusto dos Anjos dominava a forma poética tradicional, o que não o faz menos poeta do que os que não a utilizaram ou a utilizam. Aliás, grandes poetas modernos brasileiros, como Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto, só para citar alguns, não abandonaram a forma fixa, sendo grandes de qualquer maneira. A sua utilização por Augusto demonstra muito bem a sua capacidade de superá-la, não se atendo ao tradicional verso decassílabo, o metro predominante na sua poesia. Basta ver a utilização do decassílabo com duas palavras, como o famoso profundissimamente hipocondríaco (“Psicologia de um Vencido”), e o léxico utilizado, aliado, no mais das vezes, a um tom prosaico e narrativo, assunto a que voltaremos em seguida.
Augusto já quase não utiliza a medida antiga, o verso heptassilábico ou redondilho maior – a não ser em “Barcarola”. Verso assim chamado, não porque se tornou obsoleto, mas porque em Portugal entrara, no século XVI, a medida nova, o decassílabo italiano, amplamente utilizado por Camões, em Os Lusíadas e nos seus sonetos. O que Augusto dos Anjos faz é tornar a medida nova em novíssima, com uma construção complexa e desafiante, ao ponto de, sem a sistematização que a forma rígida exigia, salpicar o hexassílabo, como medida média do decassílabo, em “Os Doentes” (verso 146 e 251).
Ainda que sejam inovações, tudo isso, assim como as assonâncias e aliterações que chamam a atenção pela frequência (Brancas bacantes bêbadas o beijam, em “Monólogo de uma Sombra”, verso 97, retomada em Babujada por baixos beijos brutos, em “Tristeza de um Quarto Minguante”, verso 85), seriam previsíveis na pena, principalmente, de um poeta. Trata-se, portanto, de, digamos, características que não serviriam a estabelecer diferenças entre Augusto dos Anjos e outros poetas. O que deve ser discutido a fundo e sempre retomado é o seu léxico, especificando, contudo, que não é qualquer vocábulo que fará a diferença na sua poesia, mas o vocábulo científico. Aí reside a genialidade de um poeta que soube transformar em poesia algo inusitado e, à primeira vista, a ela estranho.
Como já vimos afirmando reiteradas vezes, o seu léxico científico não se encontra na sua poesia como palavras aleatórias ou como mero adorno, cosmética superficial, mas com um propósito definido de entender a vida, na sua forma material, tendo como base a teoria da evolução, cuja leitura, se feita apenas por um viés, apontará um poeta pessimista, com a degradação e desagregação do bem maior com que o cosmos nos presenteou: a vida. Se bem lido, veremos como Augusto dos Anjos vai adiante, buscando alcançar um plano espiritual, na crença de que, perante a evolução imensa, o homem particular que ontem fomos, seja vencido pelo homem universal (“Último Credo”).
O léxico científico é a sua pedra de toque. Sem a sua compreensão pelos leitores não se avança na análise da poesia de Augusto dos Anjos. Sem atentarmos para o fato de que o poeta compreendeu e transformou esteticamente a complexidade científica de sua época, na ânsia de procurar entender o que é o homem, nada se sustenta nas afirmações que se fazem.
Vejamos como isso se dá. Primeiro, de modo a evitar anacronismos, é preciso sempre ler um autor dentro do seu tempo, mesmo que ele seja capaz de extrapolá-lo e tornar-se atemporal, como é o caso do nosso poeta e de tantos outros que foram além. Poderíamos citar uma infinidade de teóricos para confirmar o que não é mais do que um truísmo. Mas citarei Ernst Haeckel. Em “Remarques et Éclaircissements”, final de sua obra Les énigmes de l’univers (Hachette Livre/BNF, Librairie C. Reinwald, Scheleicher Frères, Éditeurs, Paris, 1902, p. 450) no tópico 12, o cientista alemão afirma:
“Toda obra deve ser compreendida e julgada, de acordo com o seu espírito de tempo.”
Isto não significa aprisionar um autor, mas começar a sua análise considerando quando ele a escreveu. Trago à tona a afirmação inquestionável de Haeckel, porque ela é necessária a que se evitem os anacronismos frequentes e, muitas vezes, maldosos, que se observam, em relação a escritores. Aplicando-se o que Haeckel diz à sua própria obra, podemos ver que, apesar de ela ter sido fundante e de ter ajudado numa divulgação mais ampla da teoria de Darwin, há que se considerar os avanços das pesquisas, que fazem a Ciência se adaptar às novidades descobertas. Mas a base sólida para o avanço científico das pesquisas ali se encontra.O mesmo pode se aplicar à obra de Augusto dos Anjos. Na época em que ele escreve os seus poemas e os reúne no Eu, para a publicação, a ciência biológica e evolucionista ali descrita é a mais avançada do momento, o que nos leva a analisar a sua obra, a partir daquele que foi, sem dúvida, o seu guia no léxico e nos conceitos científicos ali utilizados. Há, no entanto, uma diferença. Haeckel fez ciência, e a ciência, como sabemos, avança com as novas pesquisas, novos aparelhos e equipamentos, que permitem afinar, melhorar e redirecionar o conhecimento existente. Augusto dos Anjos não fez ciência, muito menos cientificismo, o primo pobre da ciência. Ele fez literatura, poesia, num sentido mais estrito do termo, de criação ficcional, que se realiza numa forma, o poema, a coisa criada. Ele utilizou os conceitos e o léxico científico de sua época e os transformou em nova substância, a substância poética, cuja mediação é feita pela metáfora, expressando as possibilidades de recriação de uma realidade, portanto, com um sentido para além do seu conceito reducionista de figura de similaridade.
O que constatamos é que as descobertas das ciências biológicas mantêm-se mais firmes do que as teorias das ciências sociais ou humanas. Muitos dos termos e dos conceitos da época de Haeckel e de Augusto estão firmes e inabaláveis. É só atentar para a complexidade do conceito de epigênesis, na época de Augusto dos Anjos, e como o poeta o compreendeu e o utilizou magistralmente em “Psicologia de um Vencido”. A vida parte de uma única célula fecundada que se multiplica e se replica, com o intuito de formação de um ser complexo, que vai se constituindo em um processo lento até ter uma definição.
Atentemos para o conceito de coalescência (“O Poeta do Hediondo”). Para a evolução, quanto mais descemos em busca da ancestralidade e da origem dos seres mais encontramos outros animais com quem somos aparentados. Nossos parentes mais próximos são os chimpanzés, principalmente o bonobo. Mas se descermos na árvore genealógica, encontraremos os símios catarríneos (“Os Doentes”, verso 79). É a coalescência, que tem como contrário a especiação. Se insistirmos na descida, veremos que somos, sobretudo mamíferos sinapsídeos, ramo dos amniotas (“As Cismas do Destino”, verso 194), estágio importante da vida na terra, na evolução dos vertebrados e no surgimento das aves, répteis e mamíferos. Desçamos um pouco mais e veremos que o surgimento da vida proveio de uma mistura de água, ácido carbônico e amoníaco ou ácido azótico, produzida após receber a incidência da luz solar, atestado por Haeckel (op. cit., p. 322-3) e por Richard Dawkins (coalescência, p. 73; amniotas, p 304). Quando chegamos aí, mais uma vez temos Augusto em “Psicologia de um Vencido”.
Para fechar este texto, chamamos ainda a atenção para o termo foraminíferos (“As Cismas do Destino”, verso 175), essa colônia de protozoários, que se encontram nos recantos mais recônditos dos oceanos, que escaparam à extinção provocada pela queda do meteoro, há 65 milhões de anos, cuja importância para a evolução humana é reportada por Richard Dawkins, no livro A grande história da evolução (Companhia das Letras, 2009, p. 212).
Sem deixar de ter consciência da evolução dos conceitos científicos que Augusto foi buscar em Haeckel/Darwin, podemos afirmar duas coisas: muito do que Augusto se utilizou ainda está de pé, o que o mantém como um poeta magnificamente atual. A segunda afirmação vai no sentido de que é o léxico científico, estranho e sedutor que pode nos atrair ou repelir à primeira leitura. No entanto, só quem a ela sobreviver e procurar a sintonia entre a ciência e a criação literária, ficará definitivamente preso à genialidade de um poeta, que é e sempre será moderno, com soluções únicas para a sua poesia.