A música de Scriabin decola resolutamente e embarca em um vôo desenfreado através das vastas extensões do Universo. Enquanto a harm...

Apocalipse do bem, êxtase da transcendência

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A música de Scriabin decola resolutamente e embarca em um vôo desenfreado através das vastas extensões do Universo. Enquanto a harmonia tradicional está em consonância com a alma humana, a linguagem musical de Scriabin nos revela os movimentos da Alma Cósmica.
Roman Martynov, compositor e pianista russo

O evento decantado como Apocalipse, historicamente escriturado e profetizado, é tão temido quanto inúmeras são suas imaginativas versões. Na idade moderna recebeu até um novo título: Transição Planetária, processo lento que vem levando séculos para se consumar.

Religiosamente, o Apocalipse é concebido como Juízo Final, acontecimento em que os espíritos serão selecionados por suas virtudes e qualidades morais,
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Juízo finalM. Pepijn, S.XVII
e assim destinados pela justiça divina aos locais que hão de merecer, sejam infernais, purgatórios ou paradisíacos.

São aterrorizantes certas descrições dos estados que precedem e sucedem o julgamento derradeiro nas quais só restarão “prantos e ranger de dentes”. Por outro lado, são extasiantes as sensações e edênicos os cenários a ser experimentados pelos que estarão “ao lado de Deus”.

A ideia do “fim do mundo” pulula no imaginário filosófico, existencial, espiritual, religioso e se propaga sob a fértil criatividade que a expressão humana foi capaz de produzir.

No cinema, literatura, artes plásticas, na música, criaram-se muitas versões ilustrativas do insigne fenômeno, a frequentar permanentemente nossa imaginação com suposições baseadas em especulações religiosas e filosóficas.

O tal “fim do mundo” exerce grande fascínio em crenças que se abrigam há milênios sob imenso leque de abrangências as mais diversas. Nos “Quatro cavaleiros do apocalipse”, xilografado pelo alemão Albrecht Dürer,
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Cavaleiros do ApocalipseA. Dürer
na Sinfonia Fantástica de Berlioz; em canções da música pop como Gimme Shelter, dos Rolling Stones, e The end (The Doors), a arte e o entretenimento motivaram e continuam induzindo autores a presumir como seriam os eventos que desencadeariam a aniquilação dos mundos e o que a ela se sucederia.

Nas mais antigas escrituras, na mitologia nórdica e grega estão registradas aspirações às transformações da Terra para uma etapa superior, desde as catastróficas narrações bíblicas ao repovoamento do mundo promovido por Deucalião e Pirra nas Metamorfoses de Ovídio, após as tempestades de ventos e raios que rasgaram os céus por ordem de Zeus.

O enigmático e intensamente profético “Apocalipse de São João”, derradeiro texto bíblico que até hoje suscita controvérsias entre eruditos historiadores, foi tema que fomentou um projeto megalomaníaco anunciado como “o livro mais caro do mundo”, editado em 1959, a 14 mãos, por 7 renomados artistas plásticos e 7 escritores, entre eles Salvador Dali, Ossip Zadkine, Jean Cocteau e Emil Cioran. Com peso de 210 kg, capa de bronze assinada por Dali, a extravagante peça foi decorada com pedras preciosas para abrigar 150 folhas de pergaminho em que escritores e artistas de estilos diversos colaboraram com alusão ao fim dos tempos.


Da Literatura às Artes, a “Grande Revelação”

Desde as mais antigas alegorias ao surrealismo de Saramago (O ano de 1993), a imagem do fim do mundo atiça elucubrações que se multiplicam até hoje para atemorizar ou louvar o instante de revelação a que estamos predestinados. Como se a destruição total fosse um anseio geral motivado pelo desejo de renovação, justiça e, enfim, ao êxtase da transcendência.

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Juízo final / Capela Sistina, VaticanoMichelangelo, 1541 ▪ Foto: F. Anzola
Nas artes plásticas o “juízo final”, sentença indissociável do apocalipse, parece ter alcançado a mais consagrada expressão na criação de Michelangelo para o altar da Capela Sistina, na cena em que Cristo é o juiz dos eleitos para subir aos céus. Foi também magnificamente representado desde Giotto, Pieter Bruegel, Fra Angelico, Da Vinci, Peter Paul Rubens, Hieronymus Bosch, Albrecht Dürer, ao prolífero século 19 com William Turner, John Martin e outros mais.

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Juízo FinalJohn Martin, 1853
Embora atrelado ao horror que a transformação do mundo à última hora imprime, na iminência de algo sobrenatural e hecatômbico, muitas expressões artísticas “embelezaram” o apocalipse, porquanto entre as intenções e objetivos de todas as formas de fazer arte é de se imaginar que existam em suas origens conceptivas a busca pela emoção.

Na essência, inclusive etimológica, o apocalipse se traduz como a "Grande Revelação". E é nas religiões que a profecia se faz mais exaltada. Embora eivada de sofrimentos que advirão no “fim das eras”, a perspectiva de consagração da Justiça Divina e de depuração espiritual da humanidade para habitar um novo mundo sobrepõe-se à ideia do bem que reinará sobre o mal.

A queda dos condenadosRubens, S.XVII
Na Codificação da Doutrina Espírita, concebida sob viés filosófico, científico e religioso, publicada na França em 1857, o educador Allan Kardec traduz os tempos apocalípticos como processo natural condizente com a evolução do Universo. O globo terrestre, como tudo o que existe, está submetido à lei de progresso por meio da transmutação dos elementos que o compõem, assim como pelo apuramento moral dos seres encarnados e desencarnados que o povoam. Entenda-se tal transformação como um período extenso que compreende centenas de anos, marcados por conflitos, fenômenos geodinâmicos, convulsões ambientais, climáticas, próprios das cíclicas eras pelas quais os mundos evoluem há bilhões de anos.

São cenários também previstos nas antigas escrituras e no Novo Testamento, em que Jesus Cristo anuncia no Sermão Profético: "Levantar-se-ão reino contra reino, nação contra nação, haverá fomes, pestes e terremotos em vários lugares como sinal do princípio das dores”. O que em “A Gênese” Allan Kardec sintetizou como “grandes acontecimentos necessários à regeneração da humanidade para que o então “Mundo de Provas e Expiações” venha a se transformar em “Mundo de Regeneração”.

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ApocalipseF. Danby, S.XIX
Nos tempos atuais, a ideia de “transição planetária” vem sendo tema estudado e mencionado por muitas correntes filosóficas e científicas, caracterizada por transformações profundas que redefinirão as relações entre a humanidade e o meio ambiente para estabelecer mudanças na consciência individual e coletiva.

Na religião, a transformação profetizada como fim/início dos novos tempos faz-se mais presente, seja no Islamismo, Hinduísmo, Mazdaísmo, Judaísmo, nas volumosas e enigmáticas profecias de Nostradamus, e até na mitologia Viking. A escatologia cristã tem Deus como o Juiz que, após a ressurreição dos mortos, decidirá o futuro de todos os seres, na crença em que Jesus voltará para presidir o Julgamento Final.

Com o passar dos tempos, o pensamento teológico, filosófico — e por que não considerar o científico? — evoluiu para noção de um apocalipse mais afinado com a ora discutida “transição planetária”. Algo místico, cosmogênico, transcendental enfim.


Música e Religião

A junção destes sentidos metafísicos levou eminentes músicos a criar obras no intuito de transportar os ouvintes a planos existenciais que lhes proporcionassem experimentar um apocalipse cósmico além da estética, a exemplo do soberbo “Ciclo do Anel” (quatro óperas), de Richard Wagner: No “Crepúsculo dos deuses" um incêndio destroi todo o proscênio inundado pelo rio Reno, em um dos maiores desafios cenográficos do mundo operístico. Assim como o inusitado “Ciclo de Luz” (sete óperas), de Karlheinz Stockhausen, a composição mais longa da história (29 horas de duração), baseada nos “Contos invisíveis”, de sua autoria, inspirados nos textos do Apocalipse. A excentricidade visionária que caracteriza o pós-modernismo de Stockhausen, em sua forma diversificada de eletroacústica espacialmente sonora, exige do ouvinte aguçada percepção para poder entender os supremos objetivos de quem compunha para “conectar o homem a Deus”.


Tais conceitos estimularam compositores de várias épocas. Referências à transcendentalidade post-mortem estão contidas em missas famosas e seus ápices em torno do hino litúrgico medieval Dies Irae, como no monumental Réquiem de Hector Berlioz, em que a orquestra de 200 instrumentistas anuncia ao som 16 tímpanos, 2 bumbos e 4 gongos o Dia do Juízo Final com o coro a cantar “Nada permanecerá sem vingança”;


Porém, entre Wagner e Stockhausen, distantes praticamente quase um século e meio na história da música, há um compositor que se lhes interpõe como elo conceitual talvez ainda mais brilhante em propósitos místico-apocalípticos: Alexander Scriabin, artista que procurou incansavelmente construir em sua obra uma “ponte para o além”. É difícil identificar força tão divinamente esotérica que tenha caracterizado uma realização musical como a deste compositor moscovita, nascido em 1872.

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Alexander Scriabin ▪ 1872—1915


Cinestesia e sinestesia

Cinestesia e sinestesia estiveram presentes no processo conceptivo de praticamente toda a carreira de Scriabin. Por isso há quem o considere mentor de Stockhausen. Além de influências da filosofia ocultista que pautaram sua busca pelo elo com o divino, que julgava possível através da música.

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Helena Blavatsky ▪ 1831—1891
Foi notório seu interesse pela Sociedade de Teosofia e afinidade com os ensinamentos de Helena Blavatsky, talentosa pianista, clarividente confessa, dotada de faculdades mediúnicas como a psicofonia da qual se utilizou para escrever “Ísis sem véu”, obra de 1.200 páginas em que aprofunda mistérios teosóficos da ciência e do espiritualismo.

Estes contornos filosóficos moldaram os revolucionários poemas sinfônicos de Scriabin, espécie de síntese do que brotou em sua inspiração desde cedo. A paixão que neles se percebe é sobre-humana, não se limita ao amor de conceitos mundanos, pessoais, e sim a um sentimento maior, uma paixão pelo mundo, pela perfeição da Criação, por sua infinita beleza, que ardorosamente procurava transmitir a todos, em prol de todos, um juízo talvez alcançado em apenas 5 minutos do seu incandescente e arrebatador Rêverie para Orquestra.


Além das sólidas convicções que o levavam à certeza de que a música poderia edificar uma ponte para o deslumbre interior, ao despertar a religiosidade transformadora no seu sentido mais profundo, Scriabin explorou técnicas como a sobreposição cromática de quartas, em acordes de sonoridade inovadora. Acreditava que, concebida de tal forma, a música realizaria efeitos sinestésicos, levaria o ouvinte a vincular a audição com o olfato, visão, tato, paladar, e que tal convergência o elevaria a insights propícios a desabrochar metamorfoses na consciência, da experiência individual para a coletiva, do egoísmo para o altruísmo, de fundir o humano ao divino como objetivo primordial da evolução do planeta à plenitude e à felicidade.

Comunhão das Artes e Natureza

A pretendida comunhão de todas as formas de arte para as quais confluíssem os sentidos do corpo e da mente, perenizou-se no “eu musical” de Scriabin. Enquanto Mahler perseguiu a ressurreição da alma, Scriabin fez de sua obra uma busca insaciável pela excelsitude espiritual da humanidade. Ele era plenamente convicto do que a música produz no sistema sensorial, de forma consciente ou inconsciente. Seu “Poema do Fogo”
(Prometeu) foi composto para ser executado com exibição de cores associadas aos acordes, ao fraseado melódico, aos efeitos sonoros orquestrais e viabilizar condições neurológicas para o estado que os gregos chamavam de synaísthesis (percepção simultânea). O teclado foi especialmente programado para que as notas lançassem efeitos de luminosidade colorida em um extenso painel no palco.

É nas últimas sonatas e nas últimas sinfonias — “Poema Divino” (Sinfonia nº 3), “Poema do Êxtase” (Sinfonia nº 4), e Prometeu (Sinfonia nº 5) —, que Scriabin atinge o ápice de suas aspirações divinais culminando-as em linguagem harmônica inédita. O “Poema Divino”, composto para uma orquestra gigante, foi descrito por ele para “exprimir a evolução espiritual da humanidade, desde o passado envolto na bruma de mitos e crenças à proclamação de liberdade e comunhão com o cosmos”. No “Poema do Êxtase”, em que as harmonias tradicionais são destruídas em idiossincrática ritmia, Scriabin revelou que o uso do “acorde místico”, caracterizado como “pleroma”, tinha intenção de “proporcionar a percepção instantânea daquilo que estava para lá da capacidade conceitual da mente. Neste poema, sua inquietude notabiliza-se como pura sugestão gnóstica em uma oculta, mas proposital alteridade, posteriormente fortalecida.


Despertar sentimentos redentores por meio de efeitos sonoros foi uma crescente obstinação em sua obra. No programa de estreia da sonata nº 5, ele chegou a inserir a nota:

Chamo-vos à vida, a forças misteriosas Afogadas nas tenebrosas profundezas do espírito criador Ó timoratos embriões de vida! Enfim, trago-vos a audácia.

Scriabin não apenas ouvia a música que criava, ele a via, sorvia, sentia-a em cheiros, e por isso foi definido pelo pianista e doutor em Música, Giulio Draghi, como “o compositor que escutava cores”.

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Van Gogh, retratado por John Russel, 1886
Os efeitos de natureza sinestésica por ele reputados não seriam, contudo, uma concepção nova, pois a ciência já comprovara, no século XVII, a possibilidade de uma pessoa com deficiência visual experimentar cores por meio do som de um trompete, em experiências realizadas pelo britânico John Locke quando estudou medicina, ciências naturais e filosofia em Oxford. Há muitos casos de sinestesia registrados por médicos alemães, identificados de forma espontânea em cerca de 5% da população mundial. A literatura inclui Van Gogh, Rimbaud, Franz Liszt como exemplos clássicos de artistas sinestésicos. A relação emotiva entre a música e os cheiros, cores, sabores, foi defendida por Baudelaire, como pontuaram alguns biógrafos, inclusive citando tais sensações como “co-relação intrínseca à natureza das coisas, portanto, potencialmente perceptível a todo ser humano”.


Sublimação e Redenção do Mundo

O dom disruptivo, felicinético, inerente à música como instrumento de elevação espiritual, foi gestado intimamente na personalidade de Alexander Scriabin, que passou a acreditar quase obsessivamente que a Arte possuía poderosos efeitos, inclusive materiais, sobre a realidade, com poder de despertar o deus interior que habita cada ser para um diálogo inter-religioso de união entre os povos.

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Scriabin, retratado por A. Golovin, S.XX
Assim procurou alcançar estados místicos construindo novos acordes e estruturas harmônicas que estabelecessem conexões esotéricas. A décima e última sonata para piano e os trabalhos orquestrais “Poema do Êxtase” e o “Poema do Fogo” (Prometeu), já citados, traduzem os estados de espírito que o compositor pretendia para si e para o ouvinte, perseguidos até o maior projeto de sua carreira, do qual falaremos a seguir.

Este desejo latente e impetuoso de regeneração do mundo permeou seu processo inventivo e o fez conceber a mais audaciosa composição da história da Música, descrita por ele como “Uma obra de arte total", que consagraria todos seus ideais estéticos e filosóficos. Assim brotou a ideia que apoteotizaria sua carreira com uma obra cataclísmica, síntese hipnótica de múltiplas artes, fundidas em extravagante conjunção de linguagem com efeitos de som, visões, cheiros, dança, cenografia, orquestra completa, piano, órgão, corais, esculturas, relevos, tudo envolto em muitas cores e luzes, para confluência de todos os sentidos com o divino.

Poderíamos até pensar que tal percepção sensorial extramusical haja sido experimentada por Debussy ao criar La Mer, três esboços sinfônicos que tão bem se descrevem como “Da Alvorada ao Meio-dia no Mar” (De l'aube à midi sur la Mer); Jogo das Ondas (Jeux de Vagues); Diálogo do Vento com o Mar (Dialogue du Vent et de la Mer). Afinal de contas, é indiscutível a presença dos ingredientes sinestésicos que se vivenciam perante o mar, de cujo panorama exalam inebriantes segredos da eternidade.
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Assim como o que levou Mahler à homologia existencial de suas sinfonias e Richard Strauss a comungar com a ressurreição em seu poema sinfônico “Morte e Transfiguração” (Tod und Verklärung), sobre o qual se referiu já pressentindo a proximidade de sua partida: “descrição absolutamente fiel daquilo que sente um artista que morre”.

Mas em Scriabin havia substancial diferença, que se consumou na ideia do Mysterium. Em sua alma latejou por dez anos um desejo de resgatar a teurgia vivenciada nas antigas práticas cerimoniais ritualísticas para conjunção com entidades superiores por meio dos sons da fala, silvos, estalos de língua, e recursos usados para efeito de transe em sincronia com planos extraterrestres, dos quais acreditava obter ajuda para evolução da alma.


O Mysterium

Concretizava-se assim o audacioso projeto que combinaria elementos de espiritualidade e misticismo em busca de triunfal conexão cósmica tendo como palco o sopé das montanhas do Himalaia, na Índia. Tal ambição foi programada para ser executada em dias consecutivos de uma semana inteira, envolvendo cadeias de luzes, dança, produção de aromas e muita música cantada, orquestrada e entoada aos píncaros do inimaginável. Todos os instrumentos sinfônicos, em naipes duplicados, triplicados, quadruplicados, com órgão, piano, celesta e pujantes corais alternar-se-iam no mais estrondoso e arrebatador espetáculo cenográfico-musical de que já se ouviu falar. Tudo em demanda de atmosfera propícia à transição jubilosa de uma nova era para a humanidade..

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Paisagens da ÍndiaG.F. White, S.XIX
A ausência de textos e falas nesta obra, não obstante a maciça inserção das vozes em solo e coro, fortalece a intencional hegemonia de sensações não mentais, para que a atenção não se desviasse da catástase imaginada por Scriabin para os espectadores. A exorbitante densidade orquestral se funde à nitescência coral para mesclar ânimos de fervor e angústia característicos da cultuada transição. Fazendo com que energias íntimas brotassem dos efeitos do espetáculo, que não apenas envolveriam a coletividade presente, mas teriam força capaz de atingir todo o planeta.

O próprio autor anunciou:

“Não haverá um único espectador. Todos serão participantes imantados com os efeitos visuais, os ritmos, a coreografia e a fragrância dos incensos. A catedral em que isto acontecerá não será de um único tipo de pedra, pois mudará continuamente com a atmosfera e o movimento do Mysterium, com a ajuda de névoas e luzes que modificarão as silhuetas arquitetônicas e paisagísticas de todo o entorno."
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G.F. White, S.XIX
Um grande oratório sinestésico arranjado e orquestrado para mudar o mundo! Este foi o projeto que fustigou Scriabin e habitou seus oníricos anseios durante a última década de vida. Uma performance ritualizada para transfigurar uma realidade que foi considerada impossível por seus próprios amigos e pelos que vieram a tomar conhecimento da obsessiva ideia. Sobretudo quando Scriabin descreveu que sua intenção era de que “a certa altura, as potentes vibrações emitidas pela performance produzissem o desmoronamento do templo, abrindo o ritual para os céus, fazendo com que tudo, inclusive as pessoas, fosse finalmente desmaterializado para poder alcançar a unidade espiritual com o divino macrocosmo”.

Na biografia oficial escrita pelo acadêmico e escritor norte-americano Faubion Bowers, o Mysterium é citado por Scriabin como:

“A fusão de todas as artes combinadas com todas as correntes filosóficas e religiosas para produzir efeito único, indivisível. Uma espécie de novo evangelho para substituir as antigas e obsoletas escrituras.
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G.F. White, S.XIX
Cantos ritmados, música estruturada em tonalidades inéditas, gritos, interjeições, luzes, cores e aromas a provocar carícias rituais e fazer resplandecer a geometria da arquitetura sagrada de um fim de mundo com a substituição da raça humana por seres mais nobres”.

A grandiosa interação de todos estes elementos assim geraria “uma vibração tão poderosa que desencadearia a desintegração material, a extasiante morte universal para renascimento comunitário em um plano superior. O nascer do sol seriam prelúdios e o pôr do sol seriam codas; chamas irromperiam em raios de luz, lençóis de fogo e efeitos de iluminação em constante mudança permeariam o elenco e o público. A coreografia incluiria movimentos oculares, toques de mãos, odores de perfumes agradáveis e fumaças acres, olíbano, mirra, em colunas de incenso. O mundo inteiro seria convidado: “Animais, insetos, pássaros, todos devem estar presentes”.

Ao planejar seu Mysterium na Índia, Alexander Scriabin acreditava estar “devolvendo física e metafisicamente o ser humano às suas origens espirituais”. Mas ele quem foi devolvido à espiritualidade de maneira súbita e banal, acometido de septicemia fatal após infecção de um pequeno ferimento ao se barbear.

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G.F. White, S.XIX
Desmoronou-se assim toda a idílica fantasia que sua alma idealista ansiou em vida, sobretudo a que foi excentricamente lapidada no derradeiro sonho: o Mysterium!

Até desencarnar, Scriabin havia escrito mais de 70 páginas, apenas para o prelúdio, que chamou de “Ação Prefatória”, em que sua natureza taoista, ardente e copiosa, se expande além dos limites imaginados por qualquer compositor. Mas tudo seria enterrado pelo tempo ao esquecimento com o desenlace do gênio tão bem descrito pelo maestro, pianista e poeta Raul Passos:

“Scriabin talvez tenha sido o artista que mais sincera e honestamente esboçou a arte com intenções legitimamente transcendentais. Um exemplo claro do casamento plasmado entre o summum bonum dos ideais artísticos e o mais irreprimível dos desejos de expansão de consciência”.
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G.F. White, S.XIX
Muito além de Música

Ao confiar verdadeiramente em seu papel de "messias cultural", Scriabin acreditou que um espetáculo de arte total teria o condão de antecipar as profecias e consubstanciar a metamorfose do gênero humano por meio da estesia e da catarse em um gigantesco deslumbre coletivo. O Mysterium aglutinaria na diversificada miríade temática a condensação de toda transcendência que mistificou sua música.

Os efeitos que Scriabin havia procurado obstinadamente em sua música para estimular no ouvinte os mais herméticos níveis sensoriais haviam sido projetados para despertar consciências na representação
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SinestesiaD. Mulin, S.XXI
da sua derradeira e inacabada pretensão artística.

A seu ver, isto não seria possível exatamente com o que se entendia como música até então. O Mysterium não é puramente música, e sim uma profusão de efeitos aromáticos, visuais, paisagísticos envoltos numa sonoridade tão completa, diversa e exuberante para atingir os confins do universo e da imaginação. Algo que Scriabin já havia almejado, em menor escala, nas conclusões do “Poema do Êxtase”, em que se há notoriamente concebido o significado que denomina a peça, traduzido na arrebatadora cascata de timbres que a conclui. Assim como em “Vers la flame” (Rumo à luz), página inspirada em suposta visão durante uma viagem de trem, ao olhar pela janela a luz do incêndio solar e sentir vibrações metafísicas em “sons coloridos”. Nesta singular construção harmônica para piano, o inabitual uso do ritmo em compasso 9/8 e sem armadura de clave, Scriabin faz crescer e acelerar um tema simples que atinge o clímax vibrante com trinados sobrepostos em pedal de oito notas para sugerir fulgurante luminosidade. Estudos posteriores identificaram em “Vers la flame” relação com a “Proporção Áurea”, modelo aritmético intrínseco à perfeição geométrica da criação divina, como observado na estrutura das colmeias, das teias de aranha, do corpo humano, e de toda a Ordem do Universo, muito explorado por artistas plásticos, arquitetos e até escritores. À época em que compunha este poema, os princípios do Mysterium já lhe efervesciam à mente no mesmo diapasão.

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Proporção áurea ▪ Fibonacci
Tudo parecia estar em latente convergência para a sintaxe final: A obra que ironicamente Scriabin não realizou em vida teve seu afortunado destino transferido a uma ditosa personalidade que lhe nutria imensa admiração. O impressionante significado do material que dormitava na partitura do Mysterium tinha força própria e pulsava para desabrochar de alguma forma. Quem sabe o espírito do autor exerceu alguma influência que vibrou na frequência intuitiva dos apaixonados pela música...


Alexander Nemtin

Foi exatamente um músico e professor e já renomado pianista russo nascido em Molotov, duas décadas após sua morte, que se impressionou tanto com os esboços de Scriabin a ponto de dedicar 28 anos de sua vida reconstruindo
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Alexander Nemtin
a obra mais bem moldada entre os limites da loucura e da genialidade. Curiosamente, outro Alexander! — Alexander Nemtin — que conseguiu estruturar em três longos atos, com aproximadamente três horas de duração, tudo o que Scriabin sonhou para seu apocalipse extramusical.

No magnífico conjunto que tão bem soube ordenar, identificam-se nitidamente os fundamentos da genialidade orquestral de Scriabin, assim como a complexidade das peças para piano. As sonatas, prelúdios, poemas, estudos, fantasias, improvisos, romances, scherzos, valsas, música de câmera, desfilam em mantras pactuados numa cadeia contínua e recorrente de leitmotivs, dos quais emergem suas raízes sânscritas.

As virtudes sinestésicas da sonoridade musical já atraíam a atenção de Nemtin, paralelamente ou em consequência de suas afinidades com o pensamento de Scriabin. Em 1961 ele começou a experimentar o sintetizador inventado pelo engenheiro russo Eugene Murzin, que o intitulou apropriadamente de “ANS” — iniciais do nome Alexander Nikolayevich Scriabin, instrumento associado ao nascimento da música eletrônica. O engenho combinava efeitos de luz e sons e os imprimia em gráficos como ferramenta para composições livres de harmonias e escalas tradicionais, escritas em matizes cromáticas que extrapolavam os limites dos tons e semitons da escala e escola tradicionais. Tal novidade permitia novos parâmetros de instrumentalização musical foi usada por compositores soviéticos e em música de efeito para cinema, a exemplo das películas dirigidas por Andrei Tarkovsky.

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Sintetizador ANS ▪ Fonte: Culture/Ru
Alguns autores consideram o teclado emissor de cores que Scriabin idealizou para seu poema sinfônico “Prometeu” um precursor do "Sintetizador de Murzin" no qual talvez resida parte do interesse de Alexander Nemtin pela obra de seu homônimo conterrâneo, além da admiração musical. Não se mencionam afinidades suas com as ruminações teosóficas de Scriabin, mas desconfia-se de que ele tenha se compadecido de algumas injustas considerações da crítica em relação aos seus arroubos criativos por imaginar que uma performance artística fosse capaz de desencadear a transição para um novo ciclo cósmico com uma espécie humana mais evoluída, atribuindo a si próprio um papel messiânico.

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ESQ: correspondência de cores e teclas de Scriabin para a peça Prometheus / DIR: círculo cromático das notas musicais, de Scriabin
Nemtin tinha ciência de que antes desta última realização a música de Scriabin já provocava divergências, a ponto de ser associada a um proto-psicodelismo, por conter efeitos psicotrópicos típicos de quem “sofre de um desarranjo mental”, como publicado na conceituada e centenária revista nova-iorquina, “Musical Quarterly”. Imagine o que diriam se o Mysterium tivesse sido concluído e, quem sabe, executado como imaginado. Ele bem sabia que Scriabin mergulhou em territórios remotos e imponderáveis do mundo da sonoridade, no qual a música foi pensada fora das órbitas românticas; ora pontilhista como as últimas paisagens de Seurat, ora bravia e revolta como a “Noite Estrelada” de Van Gogh, para que o ouvinte ingressasse em outras galáxias, experimentasse algo novo,
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Noite EstreladaVan Gogh, 1889
nada óbvio, escutando cintilações e ondulações sem contornos definidos. O insólito projeto que o perseguiu durante a última década de existência era verdadeiramente inusitado.

Não está nesta iniciativa de recriação apenas a natureza de seu concebimento. Toda a práxis que notabiliza o cerne de transcendência onipresente na singularidade de Scriabin foi habilmente marchetada. O conhecimento adquirido em uma trajetória curricular invejável fez Nemtin se convencer do valor que o autor representava para a História da Arte e da Humanidade, merecedor de quase três décadas de trabalho que levou para elaborar tão gloriosa recomposição. A ambição testemunhada ao estudar o impressionante legado reforçou sua determinação para que aquele material pulsante de ideais tão luminosos não se findasse inacabado na partitura e ressuscitasse com a mesma dimensão em que foi imaginado. Um ano depois, Nemtin partiria ao encontro de seu autor para o mundo espiritual. Outro mistério...

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R. Delaunay, S.XX
Percebe-se que a irrefutável sintonia entre os dois Alexanders estabeleceu-se na crença que partilhavam sobre a influência mágica da arte no ser humano. Nemtin tinha igual certeza de que o mundo sonoro proposto por Scriabin era acessível a todos, e que bastava imaginar cenas e filmes sobre galáxias, constelações, mares, rios, montanhas e cachoeiras para sentir e entender seu universo criativo que se clarifica logo na abertura do Mysterium.


A compilação do Mysterium

Em três atos — Parte 1: "Universo", Parte 2: "Humanidade" e Parte 3: "Transfiguração" —, Alexander Nemtin compilou, com toda abrangência possível, o espírito completo de seu autor, reconhecível logo nos primeiros acordes.

O "Universo" foi o tema mais apropriado para dimensionar logo de início as perspectivas do projeto abraçado. A imaginação sobre o que está além dos céus fertilizou-se
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W. Blake, 1805
crescente e remonta à vida nas cavernas, enriquecendo-se de visões, conceitos, intuições, sentimentos e emoções que produzem inúmeras fantasias na mente artística humana por séculos e séculos. Revelações místicas, filosóficas, mediúnicas, empíricas, intuitivas ou científicas aformosearam todo tipo de produção estética dando mais vigor à fé na “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. Eventos cataclísmicos pelos quais a humanidade se renovou, formas de vida que se transmutaram em novas espécies, novos habitats, novos sistemas ambientais, contribuíram para que a noção de “final das eras” correspondesse ao início de uma época em que tudo se renova e o espírito evolui.

Estas ideias acerca do Universo gozam de faustosa pluralidade sobre o “uno que se verte” em mistérios ainda ocultos em todo tipo de enigmas. Apesar do avanço da ciência, nem os astrofísicos têm certeza de como ou onde surgiu a primeira energia criativa, nem como se originou o processo de formação das estrelas. Todavia, na gênese do que se compôs em torno da ideia apocalíptica estaria a crença em progresso cósmico intermitente entremeado não apenas por um único “fim do mundo”, mas por inúmeras transformações planetárias que se sucedem, era após era, para que as espécies se aperfeiçoem rumo ao infinito bem.

alexander scriabin nemtin sinestesia mysterium
Munch, 1916
Assim, o temor primitivo do desconhecido foi se transmutando em fé alimentada pela emoção que se burilou no aprimoramento do espírito abrindo-lhe percepções extrassensoriais que, apesar de conectadas com a razão, alimentam-se da emoção que se transcreveu incansavelmente em diversificadas expressões da arte. Toda esta vastidão conceitual histórica foi abordada por Nemtin na esplendorosa tessitura sonora que descreve o Universo na abertura do Mysterium. Entoada pelos metais, naipe que tão bem caracteriza o viés declamatório dos temas de Scriabin, em soberbo diálogo com o piano, instrumento que marcou sua trajetória musical, o tema já demonstra a incumbência de expor a grandiosidade do que sobrevém. As flautas então aparecem como trégua poética e aos poucos outros instrumentos surgem ainda sob o enlevo preparatório.
Durante a execução do "Universo" espirais se lançam aos céus abrindo mais amplamente o contexto. A partir daí, quatro temas curtos são paulatinamente introduzidos e se mantêm redivivos durante todo o espetáculo, executados pela orquestra, pelo piano, demais naipes, e corais que têm participação dramática, quase feérica.

O conjunto exibido justifica as classificações críticas que lhe foram atribuídas, como obra de “instrumentação indeterminada” e “Oratório Sagrado”, embora nem tudo seja sacro, pois que o Mysterium tem cores ora umbralinas, ora paradisíacas, consubstanciadas em estrondoso estrépito.

Scriabin deixa claro o que Nemtin tão bem percebeu: Não há transição sem expurgo, sem espanto, sem temor, embora a insurreição sonora seja intercalada com pausas propiciadoras de reflexão que inclinam o ouvinte à ideia de redenção. Este primeiro ato soa como varredura cósmica, com menções à formação dos mundos, arrematadas pelos corais em magnífica sinopse do Universo que ecoa no interior do ouvinte e se reflete na sondagem lírica da flauta em busca das estrelas mais distantes.

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E. Hughes, 1911
Em certas passagens, a suavidade apaziguadora de ânimos, luminosamente aveludada pelo órgão e pelo piano, sugerem uma gôndola mitológica navegando pelo Hades como representação de um "pré-apocalipse". Há solos instrumentais, tuttis, sobreposição de vozes, ora isoladas, ora em conjunto, ora em polifonia, e uma das mais complexas fugas em que o tema é posto, contraposto, entreposto, justaposto em voz, coral, órgão e orquestra em estampas que de certa forma nos lembram os poemas “do Fogo” e “do Êxtase”, peças que mais se emulam à ideia do Mysterium. Em verdade, o clamor às alturas que singulariza a personalidade de Scriabin já se percebe na primeira sinfonia, mas é no “Poema do Fogo” que ele realmente esboça a intenção final, fidedignamente depreendida por Alexander Nemtin.
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Com extraordinária capacidade, Nemtin contrapôs coros, orquestra e instrumentos solistas numa exibição de temas e fragmentos temáticos que exultam a fé ao criar este moderno oratório a conclamar o homem para o momento de se purgar dos males e renascer diante da exuberância artística, exatamente como Scriabin desejou.

O piano resgata em constante presença as sonatas e outras obras sempre prenunciando os momentos que espelham grandeza universal a incitar deslumbramento perante o inóspito desconhecido que se descortina nas torrentes de sons que parecem descer ao planeta quando finalizam o primeiro ato.

No segundo momento — O homem — logo se exulta aquele que é o representante final da escala evolutiva da vida biológica: um ser complexo, perdido, culpado e merecedor de renovação. As angústias existenciais, entretanto, não poderiam deixar de estar presentes.

Segue-se uma marcação andante, quase poética, com ênfase ao surgimento da espécie humana e sua influência na Terra em majestoso coral.
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Mulder Art, 2024
É o grito do homem, pelo homem e para o homem, que ecoa como cipoadas a reluzir na abóbada celeste em um dos belos ápices orquestrais. O tema de 4 notas que se expõe exaustivamente mantém-se a descrever a caminhada humana, consumada pelo coral e materializada com a fusão da voz, do piano, e de todo o conjunto. Talvez esta seja mais efusiva parte: o homem como centro da necessidade de sua própria transformação e a que promoveu no mundo entre caos e progresso.

Embora a iniciativa de Nemtin expresse o que há de mais essencial no contexto imaginário de Scriabin em sua pretensão final de vida, para abranger tamanha completude seria preciso muito mais do que apenas três horas, não obstante os vinte e oito anos que seu fiel admirador levou para empreendê-la. O arcabouço generosamente articulado nesta tessitura mais do que sinfônica, contextualiza de maneira genuína os horizontes de quintessência antevistos como possíveis, e que foram impressos cronologicamente em seu trabalho, culminados com a idealização apocalíptica no Himalaia.

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O segundo ato é concluído com louvação à espécie humana enquanto objeto principal a ser burilado, em que se proclama a intensidade de causas e efeitos, ações e reações sobre o mundo que recebeu para palmilhar sua história, que atinge o auge dramático ao anteceder o derradeiro ato: A Transfiguração.

A maior parte deste último episódio não soa tão proeminente como as anteriores. Mas é intenso o caráter de suspense que permeia a expectativa pelo resultado do grande final. É a vez das vozes humanas, em especial a da soprano, se avultarem entre
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w. Kandinsky, 1928
lamentos e clamores pela libertação transformadora em todas as formas que profetizaram o apocalipse, agora consumado pelo conjunto de emoções em inefável multissonância: uma autêntica edificação da sintaxe artística atrelada a efeitos “pleiotrópicos”inimagináveis.

Em ambiência magnificente o espírito de transfiguração marcha lentamente e fortalece o séquito das promessas de esperança que a humanidade tanto nutriu. Sinos e coros mântricos se fundem à orquestra como um organismo único, vivificado pelo esplendor de que as artes se nutrem para saudar a transição astral que transubstanciará os espíritos que povoam a urbe. Nunca o infinito foi tão bem traçado em uma composição que tem conexão genética com toda a obra de seu idealizador.

A conclusão deste exaustivo trabalho levado a cabo em três décadas de extremado empenho atinge níveis apoteóticos tão fenomenais que decerto acalentaram Alexander Nemtin com a plenitude do êxito. Tudo converge para um show de proporções que não se define como música, e sim como um bombardeio sonoro capaz de abalar as estruturas psíquicas do ouvinte entorpecido de emoções indizíveis, mesmo diante de uma versão que estaria aquém das proporções originalmente imaginadas. Imagine o que experimentaria a assistência perante o que Scriabin desejou para os seres de tão privilegiado planeta.


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Concerto para piano com Alexander Scriabin sob a direção de Sergei Kusevitsky Robert Sterl, 1910
Repercussão e Destino

Para gáudio e sorte da humanidade descrente e “temente” aos desígnios de Deus, o apocalipse de Scriabin não pôde ser celebrado. Embora no regozijo dos cultores da música sem limites, houve alguém como Alexander Nemtin que conseguiu condensar em apenas 3 horas de espetáculo os 28 anos de trabalho ao qual se dedicou em homenagem àquele que o pesquisador, professor, escritor, e não menos ousado compositor, Arnold Schoenberg, criador do Dodecafonismo, definiu como: “um dos mais originais, fascinantes, enigmáticos e revolucionários compositores do século”.

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Scriabin
Aos 100 anos de seu falecimento (2015), célebres performances da peça de Nemtin começaram a ser encenadas, evidentemente em cenários reduzidos. No Concertgebouw de Amsterdã, o maestro alemão Markus Stenz regeu a parte musical do Mysterium com a Netherlands Radio Philharmonic Orchestra, a soprano Marisol Montalvo, o pianista Alexey Zuev e o coral Royal Concertgebouw.

No mesmo ano, a obra foi ambientada em produção multissensorial no “Mosteiro de Thiksey” (templo budista construído em meados do século XV, em Ladaque, noroeste da Índia), registrado como o “concerto de maior público da história” ao longo da cadeia montanhosa.

Em 2018, no palco do magnífico Palácio de Belas Artes de Bruxelas (Bozart), sob a regência de Stanislav Kochanovsky, com participação da soprano Nadezhda Gulitskaya, Alexander Ghindin no piano,
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Scriabin
acompanhados pela Orquestra Nacional da Bélgica e o Coral da Rádio Húngara, o Mysterium foi exibido com show de luzes, cores, dança e multimídia, impressionando o público e a crítica, que o classificou como “experiência milenar cuja própria ambição faz parte de sua atração”.

Entretanto, Scriabin nem ninguém assistiu ao Mysterium completo. A humanidade ainda aguarda, crente ou descrente, os mistérios de seu apocalipse. Talvez assim tenha sido melhor, já que o destino lhe poupou das desgraças que vivenciaria antes de desencarnar de forma inconcebível e tão ordinária. Sua filha intencionou empreender uma representação do espetáculo, na Praça Vermelha de Moscou, em vez do Himalaia, mas em uma versão controversa à de seu pai, que não prosperou. Ela se converteu ao judaísmo e morreu em 1944 quando lutava nas fileiras da resistência clandestina judaica. Seu filho único, que já compunha e se desenhava como promissor pianista, afogou-se em condições obscuras quando nadava no rio Dnieper, em Kiev. Tais fatalidades, como tantas outras a que a natureza humana está sujeita, por si só já carregam a compleição apocalíptica que permeia a vida individual, coletiva e do próprio Universo desde sempre e para sempre.

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Scriabin e Tatiana Schlözer
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Os filhos Julian, Marina e Ariadna

Cabe a nós entendermos que os mundos, sistemas planetários, galáxias e constelações, que não tiveram começo nem fim, apenas se metamorfoseiam no mecanismo pelo qual o cosmo se expande e se retrai em estupendo movimento de inspirar e expirar, explodindo suas estrelas, que do pó se recompõem para renascer na dança celestial de um ou de vários e eternos apocalipses, juízos finais, jenseits, ou do que queiram chamar o milagre divino que é a Vida, que não cessa, tal é a Lei, e tal qual imaginou o “compositor que escutava cores”.

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  1. Anônimo8/9/24 08:13

    Um texto verdadeiramente erudito, germano. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Helder Moura8/9/24 08:20

    Texto portentoso, Romero. Pode-se pensar num tratado sobre o engenho artístico, especialmente sobre a música, e é notável como solfeja as ideias de sua tessitura num entrelaçamento lúdico que chega a ser sinfônico. Admirável, camarada. Bravo!

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  3. Waldemar José Solha9/9/24 14:20

    Texto assombroso, este de Germano Romero. Há muito eu não via nada tão totalizante — como buscaram Scriabin e Nemtin. Realmente fantástico. Uma das peças eruditas mais completas que li nos últimos tempos. Scriabin ficou devendo ao Germano Romero!

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  4. Milfa Valério9/9/24 16:30

    Seu texto realmente é admirável. Um registro de história da música mais bela, mais fascinante, dos compositores mais talentosos, geniais e importantes do mundo. Tudo o que se diga em louvor a você, em reconhecimento do seu saber e de sua paixão pela música será sempre muito inferior ao seu talento, meu querido amigo. Por isso, fiquei muda, encantada, sem ter como fazer um comentário digno da sua genialidade.

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  5. Anônimo9/9/24 16:36

    Ensaio erudito e poderoso, não obstante, instrutivo e cativante para não iniciados. Parabéns, caro amigo.

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    1. Anônimo9/9/24 16:57

      Irenaldo Quintans

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    2. Um erudito falando de um semi-erudito só faz crescer do semi pra cima. Grato, meu nobilíssimo Escritor!

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  6. Anônimo9/9/24 16:50

    Eu é que agradeço a oportunidade de tão enriquecedora leitura. Abraço! (Chico Viana)

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  7. Anônimo9/9/24 19:10

    Não se trata aqui de um mero texto bem escrito. Temos na verdade um magnífico ensaio, que mostra uma erudição impressionante. Parabéns, Germano!

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