Não sei bem qual foi o instante exato em que me rendi a mim mesma. Sei apenas que chegou graciosamente essa rendição que atravessou a minha pele e passou a nadar no meu sangue, regulando o ritmo do coração, da respiração, dos desejos que sempre fervem. Mas o certo é que trouxe cor aos meus dias.
Talvez tenha vindo quando decidi ver os outros com um pouco mais de compaixão. Não aquela compaixão piegas, nascida de uma inocência perigosa que torna vulnerável quem a sente (esta expõe ao perigo de ser explorado ou enganado novamente). A compaixão a que me refiro é a arte de examinar os seres humanos em sua completude, tentando compreender as razões emocionais, familiares, psicológicas e sócio-culturais que levam a determinadas atitudes e situações.
Tão fundamental no Budismo, a compaixão, fruto de um olhar mais profundo sobre o outro, nos permite entender melhor como funcionam os mecanismos alheios de comportamento e suas raízes. Conduz a um relaxamento na severidade da condenação que despejamos sobre os demais. Excetuando os comportamentos literalmente patológicos, em geral, ao examinar de perto as razões do outro, não raro encontramos alguém infeliz (embora nem sempre a aparência o demonstre, pois as máscaras humanas podem ser bem eficientes), angustiado, desesperado por amor, poder, aplauso, popularidade, reconhecimento; um escravo do ego, da ignorância ou das circunstâncias em que está mergulhado. Ou seja, semelhante a todo mundo. Um atento observador da natureza humana reconhece em si mesmo muitas falhas que enxerga no outro – algo excelente para destruir ilusões auto cultivadas.
É certo, repito, que esse exame não significa passar a ver o mundo com lentes rosadas de ingenuidade. Bem ao contrário, acrescenta-se óculos de extrema realidade. Continuamos, por certo, a não concordar com determinadas ações, atitudes e padrões de comportamento, mas assumimos uma posição de observação, capaz de nos fazer analisar a situação de um modo menos maniqueista ou passional. Vê-se tudo, mas o coração se alivia muito, liberto da pressão das raivas, revoltas e desejos de revanche que costumeiramente nos acometem em momentos assim. A rigor, é um movimento em socorro próprio, no qual não se concede ao outro o poder de nos destruir por dentro, consumindo preciosas horas em dor e ódio.
Pensar dessa forma tornou mais concreta a ideia do perdão, algo que sempre me pareceu um tanto abstrato e complexo. Emocionalmente, é difícil lidar com a ideia de perdoar quem nos magoou profundamente. A decepção, o choro preso na garganta, o sentimento de ser traído, agredido, caluniado, mal compreendido – tudo isso é difícil de perdoar. Mas, felizmente, não somos tecidos apenas de emoção. Temos uma segunda asa nesse voo semicego da existência, a da racionalidade. Ela tem o dom de nos fazer abraçar o perdão e torná-lo um poderoso mecanismo de libertação pessoal. O outro é problema que não me cabe resolver. Minha responsabilidade se restringe a mim.
Por isso insisto na tese de que perdoar pode e deve ser uma decisão consciente de abandonar a dor e seguir em outra direção: a da tranquilidade da alma (algo que os filósofos da Antiguidade muito valorizavam). É um alívio e um presente a si mesmo. Já não se carrega uma sombra triste sobre o ombro. O peso do ressentimento contamina todos os instantes da vida: afasta os amigos e familiares cansados de tanta mágoa e reclamação, amarga o gosto da comida na boca, afugenta o sono, impede o riso. Apegados a tantos sentimentos negativos, geramos uma tensão interna que se transforma em muro entre nós e o equilíbrio interior.
E é nesse ponto que a rendição cumpre seu papel. É preciso nos rendermos ao fato de que não temos controle sobre uma imensidão de coisas. Nem mesmo a nossa mente conseguimos domar e manter rigorosamente controlada (tente meditar, sem deixar a multidão de pensamentos tomar conta da sua mente como se fosse uma horda de macaquinhos famintos, e depois venha me contar). Quando se trata das ações dos outros, tudo piora sensivelmente.
Render-se a si mesmo é reconhecer a própria vulnerabilidade e aceitar que a vida é incerta, o passado imutável, o coração alheio é terra desconhecida e injustiças acontecem. Reúne-se, pois, todas as forças em uma só direção: mudar a forma como se reage a situações que ferem e tensionam. Não deixa de ser um ato de bravura. Ao contrário do que se pensa, certas rendições não são sinônimo de fraqueza, mas de estratégia, inteligência e autopreservação. Requer coragem enfrentar as emoções negativas que surgem quando somos feridos. Exige generosidade oferecer (ainda que silenciosamente) ao outro o tratamento que gostaríamos que nos dispensassem. É preciso força moral imensa e fartas doses de humildade para reconhecer as nossas e as alheias falhas e decidir perdoar a todos. Sem abandonar convicções éticas, sem a ilusão do esquecimento (o verbo perdoar não é sinônimo de esquecer), abre-se um espaço mental para aprender, meditar, aceitar e lidar com as coisas que estão fora do nosso alcance.
Por isso me reconforto e apaziguo no perdão quando tudo parece sombrio e agitado. Perdoar é gesto revolucionário em favor de si mesmo. Um ato de amor próprio que pode levar a uma vida mais livre, plena e feliz. Como flores flutuando sobre águas intranquilas; sua singela beleza modificando o cenário.
▪ Texto originalmente publicado em zoniazaghetto.com