Um destes dias, alentado com o proverbial saber de Gustav Jung quando disse que “quem olha para fora sonha; quem olha para dentro acor...

Missão de Ajuda Humanitária ao Paquistão (Testemunho)

ajuda humanitaria paquistão terremoto 2005
Um destes dias, alentado com o proverbial saber de Gustav Jung quando disse que “quem olha para fora sonha; quem olha para dentro acorda”, decidi que eram mais do que horas de coligir textos e arrumar uma série de apontamentos em algo mais do que nótulas soltas que, por quaisquer razões de circunstância, houve que pospor num conjunto de meros cadernos mofados, esmerilados e descuidados ao pó físico e metafísico.

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Dei por mim, então, a vaguear as minhas lembranças, testemunhos dilúcidos de odisseias várias, por um sótão empoeirado, e a arrumar cuidadosa e carinhosamente toda uma bagagem de diários em baús estrategicamente colocados de forma a serem facilmente abertos a qualquer altura e ganhar dinâmica e energia com a presença de todos com quem os partilhem. Crónicas nas quais a ligação à vida é privilegiada, naquele canto do escritório, lugar favorito das brincadeiras infantis, das expectativas, das memórias guardadas para sempre e da nostalgia de quem gosta de recordar. A viver da razão e a sobreviver de sonhos. A lembrar o tempo em que sentia que sentir era a forma mais sábia de saber e eu nem sabia...

E foi naquele “cantinho” especial — como sugeria António Prates no seu “Sesta Grande”, em que fala do conto que não foi sequer narrado, no nobre esboço do condão das narrativas —, que encontrei este pedaço de história da presença de Portugal na missão da NATO em apoio ao Paquistão. Uma missão da qual fiz orgulhosamente parte.

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Eram 08H50 (horas locais) do dia 8 de outubro de 2005, quando a região de Kashmir foi violentamente sacudida por um terramoto de magnitude 7.6 na escala de Richter, com epicentro na região de Muzaffarabad, a capital da província, a 95 km da capital, Islamabad. O terramoto provocou a destruição completa numa área de cerca de 30.000 km², nomeadamente ao longo da faixa sudeste-noroeste de Kashmir e parte do distrito de Bagh e de Abbottabad. Embora a dor e a perda não devam ser quantificadas e/ou qualificadas, para a História ficam os números, a estatística cilícia das pessoas que perderam a vida (a rondar as 80.000), das que sofreram os mais variados ferimentos (mais de 100.000, entre elas cerca de 40.000 crianças) e de mais de 500.000 famílias que ficaram sem casa.

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Paquistão, 2005 ▪ Imagens: OIT

Sob a coordenação do Euro-Atlantic Disaster Response Coordination Centre (EADRCC), a NATO esteve presente nesta operação com aproximadamente 1.200 militares, provenientes de 21 nacionalidades. A componente aérea da NATO Response Force (NRF) participou com aviões C-130 e C-160 de vários países, quatro helicópteros CH-53 alemães, um helicóptero do Luxemburgo e uma área de reabastecimento de combustível para helicópteros, proveniente da França. No que diz respeito aos meios da componente terrestre, foram enviadas para a zona de Bagh e de Arja uma Companhia de Engenharia Ligeira de Espanha (Land Component Command / LCC) e outra da Polónia, uma Companhia de Engenharia Pesada Italiana, um Esquadrão de Engenharia do Reino Unido, um Hospital de Campanha da Holanda – com efectivos médicos da República Checa, da França, do Reino Unido e de Portugal –, um Hospital de Campanha do Canadá, Equipas de Purificação de Água de Espanha, da Lituânia e da Polónia e, igualmente, Equipas para a Cooperação Civil-Militar (CIMIC) provenientes da França e da Eslovénia.

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Paquistão, 2005 ▪ Imagens: Rik Oijen ▪ NDRT (Disaster Relief Team / Equipa de Assistência a Desastres da OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Através de uma efectiva ponte aérea, a NATO efectuou mais de 160 voos entre a Europa e o Paquistão, fazendo chegar ao terreno aproximadamente 3.500 toneladas de ajuda humanitária, incluindo 16.000 tendas, 500.000 cobertores, 40.000 sacos de dormir, 17.000 fogões e várias toneladas de medicamentos e de alimentos.

A partir do aeroporto de Chaklala, helicópteros em permanente grau de prontidão transportaram mais de 1.700 toneladas de ajuda humanitária à região devastada, e encaminharam para as competentes autoridades paquistanesas mais de 7.000 pessoas deslocadas, doentes ou feridas. A equipa de reabastecimento de combustível, situada em Abbotabad, reabasteceu 1.095 helicópteros com 2.372 m³ de combustível.

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Paquistão, 2005 ▪ Imagens: NDRT + USAF

A Componente Terrestre materializou o seu apoio médico com a instalação de dois hospitais de campanha, tendo realizado cerca de 8.000 consultas, vacinado 2.300 crianças e observado 9.700 pessoas por meio do trabalho de equipas médicas móveis, transportadas via helicóptero, por viatura, e até com recurso à utilização de mulas, nas acidentadas montanhas da Caxemira.

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O helicóptero Chinook CH-47 transporta duas cargas externas de suprimentos de ajuda humanitária para as pessoas isoladas por severas tempestades de neve nos arredores da cidade fr Muzaffarabad, Província de Caxemira (Kashmir), Paquistão, após o terramoto devastador que atingiu a área em 8 de outubro de 2005.US National Archives
Em termos de apoio de engenharia, foram construídas 112 infra-estruturas (escolas e centros de saúde) em locais com altitude superior 1.500 metros, que apoiaram 1.945 estudantes, permitindo que fossem atendidas perto de 1.700 pessoas por dia. Abaixo dos 1.500 metros de altitude, na região de Arja e de Bagh, foram construídas 9 escolas para 525 estudantes e um Centro de Saúde apto a receber, diariamente, 200 pacientes. Relativamente à reparação e limpeza de estradas, foram feitos trabalhos numa extensão de cerca de 60 Km e removidos escombros num total de 41.500 m³, na área de Arja e de Bagh.

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Paquistão, 2005 ▪ Imagens: NDRT + USAF

Em cooperação com algumas Organizações Não-Governamentais, a NATO apoiou o transporte e a montagem de 13 tendas-escola, permitindo a sua utilização por parte de 1.500 estudantes.

No final, cerca de 40.000 paquistaneses foram beneficiados directamente da ajuda da NATO, e 100.000 indiretamente.

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Paquistão, 2005 ▪ Imagens: NDRT + USAF

Portugal participou nesta operação com duas equipas médicas, na área de Ginecologia – sendo uma do Exército e outra da Marinha –, integradas na Componente Terrestre da NRF e com militares do Estado-Maior do Allied Joint Command Lisbon (AJC Lisbon), tanto na fase de planeamento, como na condução da operação, nas áreas de Comando, Pessoal, Operações, Finanças, CIMIC (Civil-Military Cooperation / Cooperação Civil-Militar) e Informação Pública.

Na altura, as minhas principais funções eram as de, numa base diária, estabelecer contactos e ligação com a imprensa local e internacional, organizar 
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Conferências de Imprensa, auxiliar o Comandante da NATO Disaster Relief Team (NDRT) planeando, preparando e acompanhando conferências de imprensa e pontos de reportagem nas áreas afetadas pelo sismo, efetuar voos com os jornalistas, repórteres e fotógrafos das agencias noticiosas, à região sinistrada, apoiar, ao nível das Relações Públicas, as agências locais e internacionais, redigir e distribuir Notas de Imprensa aos Órgãos de Comunicação Social, fazer a análise dos media (em inglês e em urdu), elaborar artigos para a página web do Supreme Headquarters Allied Powers Europe (SHAPE) e do QG da NATO, sendo ainda o conselheiro da NDRT para as questões de cultura e costumes islâmicos.

Nessas tarefas tão múltiplas e desafiantes, de uma constante e assaz dinâmica aprendizagem humana e profissional, em contacto estreito com os media locais e internacionais, tive o benfazejo privilégio de chegar às populações afetadas e constatar, de perto, toda a realidade submergente após o sismo. Ao meu encontro surgiram homens, mulheres e crianças, muitos rostos, de todas as idades, uma mesma voz que clamava por alguma atenção, muitas lágrimas e esgares de desolação, mas, outrossim, facto curioso, alguns tímidos e inocentes sorrisos de fé e de esperança, mormente por parte das crianças.

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Imagens: NDRT + USAF
Num país enorme, envolvente, de gente humilde, prazenteira e afável, a azáfama de helicópteros que, a partir do aeroporto militar de Chaklala — com destino às inóspitas montanhas de Kagan, a Bagh e Arja, a Lahore, a Peshawar, a Abbottabad, a Neelum, Allai, Jhelum, ou à região de Muzzafarabad — chegava e partia, levando auxílio e prestando todo o apoio possível. Era permanente. “NATO is delivering relief to the people of Pakistan” era o lema daquela operação que empenhadamente materializámos. Lado a lado com as Nações Unidas, entre outras diversas Organizações Não-Governamentais, a NATO esteve presente nesta missão com equipas de engenharia, hospitais de campanha, médicos e enfermeiros, meios aéreos e terrestres de auxílio, variado equipamento de assistência,
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Imagens: NDRT
medicação e ajuda humanitária que, regularmente, fazendo a ponte entre a Europa e o Paquistão, via Alemanha e Turquia, ali fez chegar a ajuda de todos os países membros.

Os paquistaneses sabiam que, naquelas horas difíceis, muitas nações estavam consigo, unidas num mesmo sentimento de solidariedade e de esforço de entreajuda. E havia depois aquela sensação de que o dia deveria ter mais que as vinte e quatro horas que tem de duração, pois todos nós, os que ali estávamos, no terreno, e aqueles que, a partir do exterior, apoiavam e coordenavam aquela operação, prosseguíamos sustentados numa titânica vontade de bem-fazer, com muito querer, empenho, seriedade, abnegação, dedicação e verticalidade, ansiando chegar, ainda mais depressa e melhor, onde era mais necessário. É que só assim se lograva vencer aquelas adversidades, nas quais os maiores inimigos eram os tempos, o cronológico e o meteorológico.

Dezanove anos depois, recordo essas tantas estórias, imensas pessoas e ainda mais experiências, não só profissionalmente, mas, sobretudo, no saber feito a partir das mais dificultosas lições de vida.

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Imagens: OIT

A 8 de Fevereiro de 2006, os últimos 16 elementos que compunham a NDRT regressaram a Portugal, com o sentido do dever cumprido. Desse lote, restava o único e o último português a pisar de novo solo nacional. Ao descer as escadas do avião, recordo, num misto de perene nostalgia, mas, igualmente, com indissipável orgulho, os rostos, as vozes e a presença de que já tinha saudades, da família e dos amigos que me aguardavam. O crachá da NRF e a precinta com as palavras NATO (com tradução em Urdu), que eu sempre ostentei durante esse período, ofereci-os, naquele regresso, aos meus filhos. Por eles e para eles. A pensar nas crianças e jovens, paradigmas de fé, que conheci naquele território distante.

Pakistan, Zindabad! As maiores felicidades, Paquistão!
SOBRE O AUTOR
babel babilonia
António Rodrigues é autor do livro "Um Certo Oriente", que reúne crônicas sobre suas experiências com a cultura do Norte de África, Médio Oriente, Golfo Pérsico e Ásia. É ensaísta, orientalista e, semanalmente, aos domingos, apresenta o programa com o mesmo nome de seu livro, transmitido de Portugal pela Telefonia da Amadora, das 21h às 22h. No horário de Brasília, a emissão ocorre das 17h às 18h.

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