Na frase Eu vi minha mãe rezando, quem rezava? A mãe ou eu? Quem disser que é a mãe, cometerá um erro. Para se entender por quê, leia-se o texto abaixo.
A frase é alteração de um verso da quinta trova de um longo poema de oito trovas, intitulado “Mãe”, de autoria do médico pernambucano Barreto Coutinho. O verso original dizia: “Uma vez vi-a rezando.” A trova, desgarrada do poema, tornou-se famosa com o primeiro verso alterado. Ei-la:
Vê-se que o poeta queria dizer que era a mãe que estava rezando, o que se depreende pela sequência da trova. O poeta, no entanto, cometeu uma falha generalizada ao usar o gerúndio em lugar do infinitivo.
Em latim, uma expressão como “Creio que Deus existe” se traduz desta forma: Credo Deum esse, literalmente, “creio Deus existir”. A oração subordinada Deum esse exerce a função de objeto direto da principal Credo. O nominativo sempre foi o caso do sujeito e do predicativo do sujeito, em latim. A forma “Deus”, em latim, está no nominativo, como em Deus bonus est (Deus é bom), mas a forma “Deum” está no acusativo, que é o caso do objeto direto. Todo acusativo latino no singular termina com < m >.
Em Credo Deum esse, o acusativo exerce função de sujeito de uma oração subordinada que exerce função de objeto direto da oração principal. Vejamos outros exemplos: Scio Deum sanctum esse, literalmente: “sei Deus ser santo”. Sanctum é acusativo, concordando com Deum, como predicativo do sujeito. No caso de um verbo numa construção semelhante ter um objeto direto, a frase seria ambígua, porque o objeto direto e o sujeito ficariam ambos no acusativo e seria difícil dizer qual dos dois seria realmente o sujeito. Por exemplo: Dico magistram puellam amare (literalmente: “Digo professora menina amar”). Para explicitar o sujeito, os latinos usavam a voz passiva na subordinada: Dico a puella magistram amari (Literalmente: “Digo pela menina a professora ser amada” = “digo que a professora é amada pela menina”). O infinitivo dos verbos na voz ativa do sistema do infectum (conjunto de tempos de ação incompleta, como presentes e imperfeitos) termina em < -re,>: amare = amar; na voz passiva, termina em <-ri >: amari = ser amado.
Em português a construção do acusativo com infinitivo existe e é frequente: Mandei-o sair. O sujeito de sair é o pronome objeto direto: o. Assim podemos dizer frases como: eu te vi sair (que significa: eu vi que saíste); eu o vi fumar (= eu vi que ele/você fumava); eu a mandei entrar (eu mandei que ela/você entrasse). Eu a vi rezar (ela rezava quando eu a vi).
Como não existe a construção de acusativo com gerúndio, uma frase como Eu te vi fumando só pode significar que eu é que estava fumando quando te vi. Ela me viu entrando = ela me viu quando ela entrava. Eu a vi rezando = eu rezava quando a vi.
Em construções semelhantes, o sujeito da principal é o mesmo sujeito do gerúndio. Assim, a quadra do poeta deveria ser: “Uma vez vi-a rezar / aos pés da Virgem Maria. / Era uma santa a escutar / o que outra santa dizia.” A substituição de “escutando” por “escutar” é apenas para manter o esquema das rimas alternadas. É claro que não nos compete alterar a trova, em respeito ao seu autor, embora o objeto direto esteja aí interpretado como sujeito do gerúndio. Num período como Eu vi-a rezando, o gerúndio deveria exercer a função de adjunto adverbial da oração principal, isto é, eu, rezando, vi-a. Ou: Eu, quando rezava, vi-a. É importante lembrar que, basicamente, o particípio exerce função adjetiva; o infinitivo, função substantiva; e o gerúndio, função adverbial.
Isso significa que há distinção semântica entre Eu te vi fumar (= eu te vi quando tu fumavas) e Eu te vi fumando (= eu te vi quando eu fumava). Só na primeira frase existe o acusativo com infinitivo, isto é, só na primeira o sujeito do infinitivo é o pronome oblíquo de objeto direto. Na frase com gerúndio, não se deve interpretar o objeto direto como seu sujeito, apesar de essa regra ser ignorada pela maioria dos falantes do português, o que leva à confusão de interpretação entre “eu te vi sair” e “eu te vi saindo”.