Partamos de duas afirmações: a sátira só tem sentido se incomodar; todas as interpretações são bem-vindas, desde que se atenham ao objeto interpretado.
A sátira é um recurso estilístico, que amplia o seu fundamento, a ironia, saindo do cotidiano para a Arte. A ironia, dependendo do grau com que é criada, não fere, necessariamente. A sátira é ferina, é mordaz e só atingirá o seu objetivo se o satirizado se incomodar, se não houve incômodo ou desconforto, o esforço satírico resultou inútil. Sou partidário de ambos os recursos, a ironia e a sátira. Admiro os grandes escritores, de Marcial a Gregório de Matos, por exemplo, que a utilizaram com maestria e espicaçaram as figuras de suas épocas, que se acreditavam imunes a qualquer crítica, por se acharem perfeitas e demasiadamente importantes.
Na mesma intensidade com que admiro o escritor satírico, desprezo-o, se ele demonstrar tibieza, não assumindo o que fez, querendo desconversar ou colocar panos quentes na sua criação.
É assim que vejo a polêmica da cena viva apresentada na abertura das Olímpiadas de Paris, neste ano de 2024. Esclareço, desde já, que não escrevo para me dizer ofendido pelo que foi apresentado pelo artista Thomas Jolly. Esta discussão não me interessa. Cada um acredita no que quer ou desacredita, depende das suas conveniências, muito mais do que da fé. Interessa-me o diálogo existente entre as obras de arte, que compõe a essência da arte em si mesma. A arte é um fluxo contínuo de vasos comunicantes, sem o qual ela estaria isolada e, portanto, morta. Realizo duas críticas, no entanto, à situação que gerou uma polêmica sem sentido.
A primeira crítica diz respeito ao fato de que alguns que se creem perfeitos e muito eruditos, acusam de ignorantes os que se sentiram ofendidos com a cena viva ou discordaram da interpretação única que afirma peremptoriamente que a cena foi inspirada no quadro do holandês Jan Van Bijlert (1598-1671), O Banquete dos Deuses, alegando que a cena viva não é uma paródia da Última Ceia, de Leonardo Da Vinci. A multiplicação veloz dessa “informação” é o que costumo chamar de síndrome da inércia: alguma cabeça iluminada, tanto quanto o Apolo de Bijlert, constrói uma “verdade”, ela é tomada como irrefutável e, em seguida, é replicada, sem qualquer reflexão, ao infinito. A intenção não é de participar de um debate sério, envolvendo a criação artística, mas fomentar uma discordância, sem fundamento, de modo a aprofundar uma segregação desprovida de sentido, do tipo “nós x eles”, que só realça o maniqueísmo infantil de que o “nós” é perfeito e sem máculas, já o “eles” reúne todos os males do universo. Quantos se deram o trabalho de procurar refletir sobre a tela do holandês e a de Da Vinci, detendo-se um pouco sobre elas?
Se analisarmos o quadro do holandês, veremos que os dois planos principais são a mesa do banquete, que representa o sagrado, e o que se encontra à frente da mesa do banquete representando, por definição, o profano. À mesa estão os principais deuses olímpicos, podendo ser identificados, com um rápido olhar, Apolo ao centro, com um halo ao redor da cabeça, à sua direita, na nossa percepção, Posídon, com o seu tridente; Ártemis, Hefesto (possivelmente); à sua esquerda, Ceres (possivelmente), Afrodite, com um dos Cupidos, conversando com Ares; Hera (possivelmente) e Palas Atena. Todos se encontram à mesa, num plano dominado pela toalha branca e pela claridade de Apolo Febo, o luminoso.
No outro plano, está o deus Dionisos ou Baco, comendo um cacho de uvas, e um sátiro dançando, em perfeita consonância com as orgias bacantes, predominando a obscuridade. Está claro que o autor quis criar uma tensão entre claro-escuro, própria de sua época artística. Tensão que se representa na sua essência pelas figuras maiores de Apolo e Dionisos: este, dado ao êxtase e ao entusiasmo, concepções gregas características de suas atribuições divinas, de divindade que espera os seus seguidores saírem de si (êxtase), para neles entrar (entusiasmo); aquele, representado como a racionalidade e o equilíbrio. Como a tensão é inquestionável, não há personagem central.
Por outro lado, acredito que a inspiração do pintor holandês foi a Última Ceia, de Da Vinci, embora, em seu papel de artista criador, ele mostra uma tensão diferente. Da Vinci, apresenta os personagens no mesmo plano, tendo em Jesus o centro das atenções. A posição de alguns comensais do holandês se assemelha à de alguns de Da Vinci.
Ora, pensar que não há diálogo entre Jan Van Bijlert e Da Vinci é não reconhecer a força intertextual que move a arte. Do mesmo modo, pensar e acreditar que o Thomas Jolly apenas se inspirou no holandês, sem ter passado por sua cabeça, ainda que inconscientemente, o quadro de Da Vinci, é ingenuidade. Está claro, por exemplo, que ele subverte a ambos, Bijlert e Da Vinci, ao quebrar a tensão de ambas as obras e chamar a atenção para o Dionisos, mais parecido com Sileno, pela velhice e deboche, do que com o Dionisos, símbolo da juventude, da orgia, das forças naturais, mas nunca debochado. É nessa subversão que entra o poder da criação satírica.
Também é ingenuidade pensar que Jolly não quis criar polêmica, o que ele afirma, acompanhando um pedido de desculpas. A subversão, meus caros, é por definição e por natureza polêmica. Não julgo, nem me ofendo, com o apresentado pelo artista francês, mas considero que posso discutir a situação do ponto de vista estético, que prevê sempre releituras das grandes obras, agrade ou não ao público.
Como último esclarecimento, digo que fiz não uma análise, mas uma leitura dentro do que era possível fazer, valendo-me dos quadros à disposição na internet. A rigor, o mesmo que alguns fizeram, pois ninguém iria sair de Dijon para Florença, só para escrever um texto efêmero que, como a polêmica, sairá de cena até que outro acontecimento, sem importância, venha surgir, nesse mundo de apressados e inertes.