A escolha da ordem das palavras numa frase define uma intenção e um sentido. Daí que, ao dar título a esta conferência, optamos não por “Gilberto Freyre e a Paraíba”, mas “A Paraíba de Gilberto Freyre”. Com a preposição "de" queremos denotar posse ou pertencimento. Deste modo, a relação de afeição se explicita já na primeira frase. Como na passagem famosa do poema de San Juan de la Cruz:
¡Oh noche, que guiaste!
¡Oh noche amable más que la alborada!
¡Oh noche que juntaste
Amado con amada
amada en el Amado transformada!
A ideia-chave está no último verso, e é retomada, entre outros, por Camões: “Transforma-se o amador na cousa amada...”
Dito isto, iniciamos por uma ideia geral: a Paraíba de Gilberto Freyre deve ser entendida como uma relação que extrapola o plano intelectual. A Paraíba não constitui meramente um assunto, um problema, algo a desvendar ou a entender, mas um sentimento, uma vivência. É parte do carinho e da intimidade: entrañable, como diria um espanhol.
A Paraíba, mais do que um tema de estudos, se revela como de liames e enlaces. Além disso, constitui a primeira exteriorização efetiva do seu Ego além do ambiente patriarcal. Veja-se como Freyre registrou o seu ato de ir à Paraíba:
“Recife, 1916
“Regresso da Paraíba, para onde fui, misterioso e secreto, proferir uma conferência. Não sei se diga que foi um triunfo, porque ouvi um dos patronos da conferência, o G. S., dizer a outro: ‘Não creio que este menino tenha escrito o trabalho que acaba de ler. Deve ser obra do Pai’. E elogiou largamente meu Pai. A verdade é que meu Pai nem sequer soube da conferência. Repito que fui à Paraíba quase fugido de casa. Quase secretamente. Hospedei-me no sobrado dos Lemos, na Rua Direita. Toda manhã saía de toalha no ombro, com o Osvaldo Lemos, pela rua principal da cidade, a fim de tomar banho num banheiro semipúblico. De toalha no ombro e de chinelos. É um lugar pitoresco a Paraíba.
“Carlos Dias Fernandes, acreditando ou não no fato de ser eu o autor da conferência, fez-me grandes elogios no jornal A União. Pelo menos admitiu que eu recitei bem o tal estudo que ele chamou ‘grave e refletido’ sobre “Spencer e o problema da educação no Brasil”.
“Quase fugido de casa” – sublinhe-se a frase usada por Freyre, que funciona com um sentido oposto àquele “se algum dia o prazer vier procurar-me dize a esse monstro que eu fugi de casa”.
Há um prazer em fugir de casa, e é uma fantasia recorrente nos adolescentes e nas crianças. Porém, no caso de Freyre, especialmente no modo como narra sua ida à Paraíba, não se trata de um ato de escapar ou evadir-se, mas de um encontro. Consigo mesmo. A construção da própria casa simbólica. Mais do que apenas ‘dómos’,‘oikos’, ‘oikia’.
Talvez Gilberto Freyre haja encontrado na Paraíba uma espécie de segunda casa. Aos 16 anos, ainda adolescente. Prenúncio de um casamento efetivo com uma paraibana – que ocorreria décadas depois. Ele descobriu a Paraíba e foi descoberto por ela oito anos antes de descobrir a América, a Outra América, como ele chamava os Estados Unidos.
Amou a Paraíba por vê-la e ser visto, ouvi-la e se fazer ouvir. Tocá-la, percorrê-la, conhecê-la, naquele sentido tão bíblico de conhecer uma mulher. Foi sua amante natural, muito antes de enamorar-se da Bahia e do Rio de Janeiro, de Salamanca e Heidelberg.
Esse amor de juventude perenizou-se até os seus últimos dias. Com o coração, o cérebro, o corpo inteiro, a alma plena.
Discorrer sobre a Paraíba de Gilberto Freyre é ir além da geografia. É falar de pessoas. Pessoas que formaram parte do seu destino, se integram a algumas de suas escolhas mais pessoais e íntimas, e foram decisivas na sua vida. Nesse grupo seleto estão amigos como José Lins do Rego, Assis Chateaubriand, Odilon Ribeiro Coutinho, Tarcísio Burity, José Américo de Almeida.
Em 1941, já homem maduro e famoso por obras que mostraram o Brasil nu, como Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre é que decide casar-se. A escolhida foi uma paraibana. Magdalena Guedes Pereira.
O casamento foi assim noticiado no dia 25 de novembro de 1941, em O Jornal, de Assis Chateaubriand, paraibano de Umbuzeiro, que foi em sua época dominante no país inteiro:
“Realiza-se hoje, às 16 horas, na igreja do Mosteiro de São Bento, o casamento da senhorita Magdalena Guedes Pereira, filha do sr. Walfredo Guedes Pereira, e sua esposa, sra. Espinola Guedes Pereira, com o sr. Gilberto Freyre. A noiva pertence a uma das mais tradicionais famílias do norte brasileiro; o noivo, sociólogo dedicado aos assuntos do Brasil, escritor, jornalista, é autor de pesquisa e interpretação dos fenômenos sociais do Brasil, tais como: Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Guia da cidade de Olinda, Açúcar e outros.”
D. Clemente Maria foi o responsável por oficiar o casamento de Gilberto Freyre na cerimônia religiosa católica apostólica romana. Atuaram como padrinhos o seu pai Alfredo e sua mãe Francisca, e também Luís Jardim e a esposa Alice, Walfredo Guedes Pereira Sobrinho e senhora, o prof. Silva Melo e senhora e Paulo Barros de Andrade Lima e Carolina Baltar. Isso aconteceu num dia de terça-feira, a 25 de novembro de 1941.
Cabe dizer que o filho de Gilberto Freyre, Fernando, foi casado com Maria Cristina Suassuna, sobrinha do escritor paraibano Ariano Suassuna cuja presença no Recife começa a se fazer notar a partir da década de 1940.
Ainda nessa mesma década de 1940 floresce uma nova amizade paraibana de Gilberto Freyre. Com Odilon Ribeiro Coutinho. Gilberto, na casa dos quarenta. Odilon, no entusiasmo dos vinte. Ele e Freyre estavam juntos na chamada Esquerda Democrática, filiados à UDN, amigos de Carlos Lacerda, o mais feroz opositor ao Estado Novo.
Odilon Ribeiro Coutinho, no tempo de estudante na Faculdade de Direito do Recife, despontou como uma liderança política. Inclusive elegendo-se vice-presidente da UNE. Mas, no momento de definir-se a candidatura para a assembleia constituinte, que representaria o efetivo fim da ditadura, optou por lançar Gilberto Freyre a deputado federal.
Faculdade de Direito do Recife / Gilberto Freyre com Odilon R. Coutinho e Carlos Lacerda IBGE / FGF
Com Odilon Ribeiro Coutinho a história é de uma amizade para toda a vida. Odilon, como muitos paraibanos, – entre eles, Augusto dos Anjos – estudou na Faculdade de Direito do Recife. Em 1944, por exemplo, integrou a chapa vencedora para liderar o diretório acadêmico de Paulo Soriano de Souza. Entre os seus contemporâneos estava o historiador Armando Souto Maior, que cursava o primeiro ano, enquanto Odilon já ingressara no segundo. Seu contemporâneo, Demócrito de Souza Filho, quartoanista de direito, teria um destino trágico.
Nas eleições para presidente da República, Odilon apoiou o brigadeiro Eduardo Gomes. Em discurso num ato político no Recife, na época, afirmou:
“A minha geração tem resistido com um vigor impressionante ao desencanto. A sua formação coincidiu com um dos períodos mais violentos de degradação moral e política da vida brasileira. O suborno e a corrupção sob todas as forma, o fatalismo oriental, o consumismo e o amor às posições converteram o país, melancolicamente, num enorme eito – para usar de uma expressão pitoresca de Assis Chateaubriand em relação à situação política de Pernambuco – onde não mais um patriarca exerce o poder mediante uma pressão física, em algumas partes abrandada pela generosidade, mas o poder é exercido por um tirano que corrompe antes de violentar e violenta quando a dignidade resiste ao suborno.
“O brigadeiro Eduardo Gomes veio como uma grande esperança de renovação. O seu passado todo cheio de gestos de desprendimento, de respeito pelo seu povo, de fidelidade às nossas tradições democráticas, torna-o o brasileiro capaz de restaurar a confiança entre os moços de minha geração".
“O brigadeiro Eduardo Gomes veio como uma grande esperança de renovação. O seu passado todo cheio de gestos de desprendimento, de respeito pelo seu povo, de fidelidade às nossas tradições democráticas, torna-o o brasileiro capaz de restaurar a confiança entre os moços de minha geração".
Isso foi publicado no Diário de Pernambuco, do dia 2 de março de 1945. No dia seguinte, os estudantes promoveram uma passeata e um comício em protesto contra a ditadura Vargas. Enquanto discursava Gilberto Freyre, na sacada da sede do Diário de Pernambuco, houve tiros da polícia. Uma bala atingiu mortalmente o estudante Demócrito e o carvoeiro Manuel Elias dos Santos.
Se a Revolução de 30 precipitou-se com um assassinato na rua Nova, no Recife, o fim da ditatura por ela gerado também começou a dar-se a poucos metros dali, na Praça da Independência.
Naquele tempo Odilon Ribeiro Coutinho era então chamado de “maquis pernambucano nascido na Paraíba”. Maquis é termo ligado umbilicalmente à ideia de resistência, e tem origem francesa. Serviu para designar a guerrilha antifranquista na guerra civil espanhola e, principalmente, contra os nazistas que ocuparam a França durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi no contexto da redemocratização do país que o líder estudantil Odilon Ribeiro Coutinho lançou com os seus colegas a candidatura de Gilberto Freyre a deputado federal.
Num discurso no Teatro de Santa Isabel, ele afirmou que aquela candidatura havia nascido sem pecado original. Num artigo publicado no Diário de Pernambuco (28-11-1945), Edson Nery da Fonseca faz menção à expressão, e, além de citar Odilon, transcreve uma declaração de José Lins do Rego, o principal amigo paraibano de Gilberto Freyre, que com ele conviveu desde a década de 1920:
“É um homem que sabe das nossas fraquezas e das nossas forças, incapaz de calar na hora do elogio ou na hora da restrição. Quando não gosta, não esconde ao amigo o que a agudeza crítica repele. Fala sempre com a maior das franquezas”.
Em 27 de fevereiro de 1946, foi a vez de Freyre escrever não sobre si ou sua candidatura vitoriosa, mas a respeito de Odilon, ou, como diz no título, “A propósito de Odilon, o moço”:“Nessa luta menos de moços contra velhos do que dos homens de brio de todas as idades contra os velhacos de toda a espécie, é que Odilon Ribeiro Coutinho bateu-se com um vigor esplêndido. Ninguém foi mais desassombrado, mais bravo, mais lúcido na ação. Ninguém deu aos mais velhos exemplos mais incisivos de consciência de responsabilidade cívica do que esse menino rico. rico e de formação brasileiramente feudal. menino de engenho. neto do velho Lulu de Maré. Exemplo como o de Odilon Ribeiro Coutinho aumentam-nos não só a esperança como a fé na mocidade brasileira.”
Num artigo justamente intitulado “Gilberto Freyre e a Paraíba”, Edilberto Coutinho – que escolheu a obra ficcional de Gilberto como tema de tese – menciona outro amigo paraibano do autor de Sobrados e Mucambos: Tarcísio Burity. Diz ele que Freyre se referia a Burity como “nosso governador-intelectual”. Intelectual tão presente nos seminários de Tropicologia por Freyre idealizados.
A Paraíba é de Gilberto Freyre por esses e outros personagens de sua afeição mais autêntica. Desde a quase adolescência do estudante que dedicou a Augusto dos Anjos um dos seus melhores ensaios de interpretação literária. Com José Américo de Almeida trata-se de uma admiração mútua.
Foi José Américo autor de um dos melhores estudos sobre Casa-Grande & Senzala. Como disse Edilberto, o autor de Reflexões de uma cabra encontrou em Freyre a capacidade de “manipular, dando-lhes relevo, 'os pequenos fatos entrosados na narrativa”.
Quanto ao “companheiro de alma” que foi José Lins do Rego para Gilberto Freyre, há tantas influências mútuas que o assunto por si mereceria uma conferência própria ou um livro inteiro.
Anos depois da sua “estreia” como conferencista, Gilberto Freyre fez outra conferência na Paraíba. No sábado, dia 5 de abril de 1924. No Teatro Santa Rosa, na Paraíba então capital do estado Paraíba. “Alguns escritores e algumas tendências atuais” foi o tema.
Estava ladeado por Carlos Dias Fernandes, Guilherme da Silveira, Matheus de Oliveira, o padre Pedro Anisio e Álvaro de Carvalho, que fez o discurso de apresentação.
Conforme noticiam os jornais na época, a conferência durou 45 minutos. Entre os escritores citados por Freyre: Rodolpho Bourne, Psicari, Ronald de Carvalho, Jackson de Figueiredo, Renato Almeida. As bandas e música da polícia e do 22º. Batalhão de Caçadores estiveram presentes.
A amizade de Gilberto Freyre pela Paraíba e alguns especiais paraibanos não é amizade de mera vizinha, e sim de linhagem espiritual, com os seus pensamentos, sentimentos e valores. Sedimenta-se na sua juventude e prossegue estável por toda a sua vida.
Nas décadas de 1920 e 1930 podemos citar especialmente José Lins do Rego como símbolo do seu acolhimento por paraibanos. Na de 1940 o centro está em Odilon Ribeiro Coutinho. Na de 1950 em José Américo de Almeida.
No início da década de 1950 Freyre foi convidado pelo então governador José Américo para colaborar com ele na organização da futura universidade da Paraíba. Diz o próprio Freyre:
“Ficou combinado que eu prestasse essa colaboração como uma espécie de consultor daquele governo em assuntos culturais. isso por me ser impossível demorar naquele estado que, aliás, não sei hoje separar do de Pernambuco no meu afeto. Governado, como é agora, não por um simples político ou um mero administrador, mas por um estadista da visão e do espírito plástico de José Américo de Almeida, que é também um intelectual particularmente sensível aos problemas de cultura e está cercado de jovens e talentosos intelectuais como os srs. Lopes de Andrade, Juarez Batista, Odilon Ribeiro e outros, este fato torna mais forte minha ligação com o estado da Paraíba.”
Evidentemente, Gilberto Freyre já conhecia José Américo desde os anos 1920, conforme ele próprio relata o contexto no seu livro Tempo morto e outros tempos:
“J. L. do R. me faz conhecer o seu grande triunfo paraibano: é J. A. de A. Um triunfo, na verdade. Não se confunde com a mediocridade intelectual que aqui, como em Pernambuco, tenho conhecido. Destaca-se do próprio D. D. F. Muito míope, feioso, um tanto desajeitado nos modos. Mas dominando esses traços negativos, uma força de personalidade que se faz sentir de maneira irresistível. Não se faz sentir pela ênfase nem dos gestos nem de palavras. É uma força suave. Suave, porém marcada por uma energia interior capaz de se tornar, sendo preciso, exterior. Ligo-a às suas páginas sobre Augusto dos Anjos; e concluo que são bem a expressão do seu “eu” em face de outro e poderoso ‘eu’. É um escritor. Euclidiano, por vezes, em sua frase, a forte personalidade não permite que nele o estilo deixe de ser o homem.”
Como dissemos, Gilberto Freyre estreou como conferencista na Paraíba. Tinha 17 anos de idade incompletos, pois o evento ocorreu no sábado, 27 de janeiro de 1917. No seu livro Tempo morto e outros tempos, a anotação a que se refere a isso está registrada em 1916, como já citado, mas trata-se de equívoco do autor. O que corrobora hipótese de não se tratar aquele livro de um diário autêntico, e sim de um livro de memórias sob o formato de diário. No jornal paraibano O Norte há uma notícia sobre a palestra, em 27 de janeiro de 1917:“Uma conferência do jovem professor Gilberto Freyre hoje, No Pathé.
“Hoje pelas 18 1/2 horas o sr. Gilberto Freyre, professor do referido colégio, realizará no Cinema Pathé, uma palestra que versará sobre a instrução, a par de apreciações a respeito do ensino que se faz naquele educandário estrangeiro”.
A nota se refere ao Colégio Americano Batista, ou Americano Gilreath, onde então estudava Freyre.
Sabem os conhecedores da trajetória de Freyre que sete anos após essa estreia e um ano após de regressar dos EEUU mestre pela Universidade de Columbia, ele torna a realizar uma conferência na Paraíba, desta vez sobre o tema “Apologia pro generatione sua”.
Carta de Fidelino de Figueiredo. Mostra-se interessado pela minha conferência, Apologia pro generatione sua, proferida na Paraíba e mandada publicar por um grupo de amigos paraibanos – José Américo de Almeida e outros. Está cheia de erros de revisão e, ao contrário do que me haviam prometido, foi impressa em papel comum. Fidelino se refere generosamente ao meu trabalho, até agora sem repercussão alguma no Brasil. Escreve Fidelino:
“Não posso furtar-me à surpresa de haver público tão culto em Paraíba... Explique-me isso se tiver vagar. A sua conferência merecia divulgação maior. Duzentos exemplares é nada. Talvez o Sardinha gostasse de a reproduzir na Nação Portuguesa.”
Pouco tempo depois de regressar dos seus estudos de graduação e mestrado nos Estados Unidos, Gilberto Freyre passa a integrar a equipe do governador Estácio Coimbra em Pernambuco. Era um dos seus principais e mais próximos assessores, quando irrompeu a revolução de 1930. Leiamos o que escreveu a respeito Gilberto Freyre sobre o início daquele período turbulento e decisivo para a História do Brasil e para sua história pessoal:
Recife, 1930
“O governador da Paraíba, João Pessoa, assassinado numa confeitaria da Rua Nova. Autor, um Dantas, conhecido pela bravura. Péssimo para Estácio. Vai se dizer nos jornais do Rio que foi crime político. A verdade é que foi crime por motivo personalíssimo. O J. P. vinha exibindo cartas do D. a uma senhora: documentos de caráter o mais íntimo. D. resolveu liquidar o assunto matando o ofensor e se arriscando a morrer. Sozinho, pela frente, apresentou-se a J. P., no momento entre dois amigos, o C. L. C. e o A. M., nenhum dos quais tentou a menor reação. Nem eles, nem o J. P. O D. está preso.
O diabo, repita-se, para Estácio Coimbra. Tudo consequência da política cretina que está sendo seguida pelo Presidente da República com relação à Paraíba. O que acontece contra as advertências, quer de E. C., quer do excelente – como chefe militar – General Lavanère-Wanderley.
“Como se pode ser tão mau político como está sendo Washington Luís? Excede, pelos seus atos e por suas atitudes, tudo que se poderia esperar de sua falta de inteligência e de tato. De inteligência e também de atenção pelos amigos cujas vidas ele, do seu Rio de Janeiro, seguro e invulnerável a atentados, cercado de embaixadas, expõe a constantes perigos. Considero a vida de E. C. em perigo. Ele está sendo apontado como responsável pelo assassinato de J. P. Um absurdo. Mas no clima de ódio que o Brasil está vivendo, sobretudo no Nordeste, um absurdo capaz de resultar não só numa revolução como, imediatamente, em várias mortes de homens inocentes.”
“O governador da Paraíba, João Pessoa, assassinado numa confeitaria da Rua Nova. Autor, um Dantas, conhecido pela bravura. Péssimo para Estácio. Vai se dizer nos jornais do Rio que foi crime político. A verdade é que foi crime por motivo personalíssimo. O J. P. vinha exibindo cartas do D. a uma senhora: documentos de caráter o mais íntimo. D. resolveu liquidar o assunto matando o ofensor e se arriscando a morrer. Sozinho, pela frente, apresentou-se a J. P., no momento entre dois amigos, o C. L. C. e o A. M., nenhum dos quais tentou a menor reação. Nem eles, nem o J. P. O D. está preso.
O diabo, repita-se, para Estácio Coimbra. Tudo consequência da política cretina que está sendo seguida pelo Presidente da República com relação à Paraíba. O que acontece contra as advertências, quer de E. C., quer do excelente – como chefe militar – General Lavanère-Wanderley.
“Como se pode ser tão mau político como está sendo Washington Luís? Excede, pelos seus atos e por suas atitudes, tudo que se poderia esperar de sua falta de inteligência e de tato. De inteligência e também de atenção pelos amigos cujas vidas ele, do seu Rio de Janeiro, seguro e invulnerável a atentados, cercado de embaixadas, expõe a constantes perigos. Considero a vida de E. C. em perigo. Ele está sendo apontado como responsável pelo assassinato de J. P. Um absurdo. Mas no clima de ódio que o Brasil está vivendo, sobretudo no Nordeste, um absurdo capaz de resultar não só numa revolução como, imediatamente, em várias mortes de homens inocentes.”
(...) A História talvez não seja uma simples mestra da vida, como queriam alguns antigos, e sim uma cúmplice irônica do drama humano, e também das suas farsas, comédias e tragédias. Fundamentalmente porque não há história – exceto a natural – sem humanos, e não há humanos sem o sofrimento e o riso, o acaso e os caprichos da Fortuna. A revolução de 30 é um dos exemplos no Brasil. Disso teve consciência Freyre quando escreveu:
“Já nos chegam notícias dos triunfos revolucionários no Recife. Grande mística a que se vem formando em torno de Juarez Távora. Que pensar desse moço agora com fama de herói? Penso às vezes que não é mais do que um rapaz de pernas longas e de ideias verdes, sem saber que rumo dê aos seus triunfos. Cheio de mãos esquerdas. Porém honesto e bom. E meu amigo José Américo, que sempre admirei e respeitei? É evidente que não conseguiu evitar o saque e o incêndio de casas de adversários merecedores do seu respeito.
Evidentemente não se trata de uma nova revolução pernambucana no estilo da de 17, mas de uma espécie de quebra-quilos misturada com vinagrada, balaiada, cabanada.
Dizem-me que a canalha fantasiada de povo, que saqueou casas no Recife, era quase toda de gente de fora da cidade. Um tal Terto do interior da Paraíba é que teria dirigido o magote mais desembestado de salteadores. Uma vergonha, esse assalto, para revolucionários que pretendem ser messiânicos. Uma vergonha para todos nós, brasileiros.”
O desdobramento de um conflito, se se exacerba, sabe-se onde vai dar. Muitas vezes em tragédia, ou, no mínimo, em dramas pessoais. Foi assim, por exemplo, na guerra civil espanhola, que, dentro da mesma família, dois poetas, um integrou o governo fascista, o outro perseguido pelo franquismo, terminou morrendo no exílio na França. Obviamente, nos referimos a Manuel e Antonio Machado. No caso do Brasil, a revolução de 30 tanto serviu para unir quanto para separar. Mas o tempo passa, separa, une, ou volta a unir e a separar. Das trevas e cinzas não veio nenhum arco-íris, mas sedimentou em Freyre o claro-escuro das ideologias. Assim, como já assinalamos antes, Gilberto Freyre e José Américo que, em 1930, estavam em lados politicamente opostos, logo se reuniram no sentido da colaboração recíproca. A própria relação de Freyre com o ditador entronizado em 1930 se concluiu com um necrológio enfaticamente elogioso quando da morte por suicídio do Vargas “democrático”.
Para concluir este breve passeio na Paraíba de Gilberto Freyre, onde caberiam muitos outros nomes, fatos e datas, resolvemos simplesmente dar a palavra ao próprio autor de Casa-Grande & Senzala, que homenageia o paraibano Tarcisio Burity, outro elo de sua ligação Paraíba-Pernambuco.
No artigo “Meu caro Tarcisio Burity”, publicado no Diário de Pernambuco, em 4 de abril de 1982, diz Gilberto Freyre:
“Só não foi surpresa total porque o novo e lúcido embaixador da França no Brasil, monsieur Robert Richard, me tinha advertido no Recife ao voltar da Paraíba: 'o Centro Cultural em construção em João Pessoa é qualquer coisa e maravilhoso'.
“Essa maravilha, meu caro governador da Paraíba e companheiro inesquecível pela inteligência e pelo saber, do seminário de tropicologia do Recife, acabo de vê-la com os próprios olhos; de admirá-la de perto; de admirá-la, sentindo-me orgulhoso de ser brasileiro de um Nordeste que, não sendo dos brasis mais ricos, uma vez por outra surpreende esses brasis mais ricos, com sua criatividade, de brasil sempre forte de ânimo inovador, de inteligência desbravadora, de energia capaz de fazer sair cidades, das mais rudes das pedras.”
Ronaldo Cunha Lima, ao homenagear no senado Odilon Ribeiro Coutinho, mencionou sua amizade com Gilberto Freyre. Diógenes da Cunha Lima, num artigo na Tribuna do Norte, menciona a admiração por um dos livros mais relevantes e menos conhecidos de Freyre: A propósito de frades. É a propósito de livros esquecidos que queremos destacar uma obra de Gilberto Freyre que mesmo os admiradores de sua obra pouco mencionam, e é um dos seus melhores trabalhos: Contribuição para uma sociologia da biografia.
Poucos sabem que esse livro foi escrito por sugestão e financiamento de um paraibano: Assis Chateaubriand, outra das amizades que nutriu Gilberto Freyre por toda a vida. A vida inteira que podia ter sido, e foi. A vida inteira que enriqueceu com sua inteligência esta Campina Grande, nas visitas e nas falas, por iniciativa de Elizabeth Marinheiro.
Gilberto Freyre não apenas esteve em Campina Grande, escreveu sobre Campina Grande. No artigo “A propósito de Campina Grande, publicado no Diario de Pernambuco, em 27 de agosto de 1978, ele afirma: “Uma sugestão terapêutica ao brasileiro que se sinta desalentado quanto ao futuro do nordeste: vá a Campina Grande. Ele afirma que Elizabeth Marinheiro é mestra de raro valor, e diz mais: talvez, no Brasil de hoje, a maior mestra universitária de literatura. Lúcida e sábia.” Conclui o seu artigo assim:
“Reafirmo a sugestão terapêutica: brasileiro de fé abalada no futuro no Nordeste vá a Campina Grande. Voltará curado do desalento e convicto de que esse futuro, como o do Brasil em geral, depende de uma maior aliança da ação do Estado – um Estado menos burocrático e menos estatizante – e mais criativa particular.”
Deste modo, concluímos com a ideia de Gilberto Freyre, louvando a iniciativa particular, agradecendo a iniciativa particular do convite para esta conferência em torno da Paraíba de Gilberto Freyre, a Francisco de Sales Gaudêncio, a Thélio Queiroz Farias, a Elizabeth Marinheiro, às academias de Letras da Paraíba e de Campina Grande, e a cada um dos presentes e dos que promoveram este encontro, e a ele assistem. Não apenas de uma nossa Paraíba com o nosso Pernambuco, e vice-versa, por intermédio de Gilberto Freyre. Encontro que ocorre exatamente no dia do aniversário da paraibana Magdalena Guedes Pereira Freyre, sua mulher. No dia da morte de Gilberto Freyre.
Como sabemos, os cristãos festejam os seus santos no dia de sua morte, pois esta, paradoxalmente, é sinônimo de vida, da nova vida, da ressurreição. No caso de Freyre, tão cristão no sentido mais genuíno, pelos 87 anos de vida, cobrindo quase todo o século 20, pela graça, e pelas obras, que escreveu e lemos, pode-se repetir, neste dia, como o apóstolo Paulo: Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Gilberto Freyre nos mostra não o aguilhão, mostra os dedos, as mãos, empunhando o lápis, o estilo vivo com que escreveu, uma literatura tão viva, que hoje, no seu dia, e por tantos dias ainda, causa admiração, pois foi um dos mais orgulhosos e generosos escritores do brasil, que ganhou o mundo, o mundo, que, como afirmou o seu amigo Cícero Dias, começava no Recife. Acrescente-se: começava também, e continuava, e continua, na Paraíba sem fronteiras, de Gilberto Freyre, de muitos elos, de todos nós.