Em um dos seus mais belos sonetos, Camões inicia com um excepcional decassílabo, que atiça a curiosidade do leitor: “Mudam-se os tempos...

A maldição das múmias

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Em um dos seus mais belos sonetos, Camões inicia com um excepcional decassílabo, que atiça a curiosidade do leitor: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. No Brasil, parece que vivemos num universo paralelo, onde o tempo não passa e, por não passar, as vontades continuam as mesmas. Vivemos um tempo cediço, num atraso de dar dó, em que a pobreza se revela em todos os sentidos: da pobreza econômica, essencial para as mesquinharias de vidas ainda mais mesquinhas, à pobreza cultural, assomando nessa área, a miséria vernacular.

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Julguem por vocês próprios, diletos leitores, a partir de um pequeno texto postado por mim no Facebook, há 8 anos. Digam-me se conseguiremos ver alguma luz no fim do túnel da nossa indigência, que não seja a de um TGV vindo em sentido contrário.

Eis o texto:

Papagaio tartamudo
Poucos hão de se lembrar do major Siqueira, personagem de Quincas Borba. Não, a minha memória não é boa, eu só me lembro da cor da bermuda que eu vestia ontem, porque só tenho jeans tradicional.

Nem eu mesmo me lembrava de Siqueira, mas como estou relendo este romance, para um curso que ministrarei, ele veio a propósito. Pois bem, o major Siqueira, diz Machado, “mudava o assunto, sem mudar o estilo, – difuso e derramado” (Capítulo XLIII). De pronto, veio-me à mente uns, digamos, discursos que eu estou acompanhando de uns tempos para cá. Nem mudam o estilo, entenda-se aqui
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a boa vontade empregada na palavra estilo, nem mudam o assunto.

O estilo difuso do major Siqueira ainda se beneficia da criação literária do excepcional Machado de Assis, que quanto mais envelhece, melhor fica. Com relação aos discursos que tenho ouvido, já há algum tempo, eu diria que lhes falta, no mínimo, articulação, além de um léxico pobre na quantidade e na qualidade. Vejamos: golpe, golpista, golpismo, fascismo, fascista, elite branca opressora, imprensa burguesa, imprensa Pig, genocida e... acabou.

Siqueira ainda era derramado, apesar de difuso. Aqui temos uma palinfrasia de papagaio tartamudo. Diante desses papagueadores, tenho certeza de que Machado consideraria Siqueira nada menos que Cícero, o Marco Túlio, denunciando a conjuração de Catilina.
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Mudou alguma coisa?

Até quando, inspirado no grande orador aqui citado, vamos aguentar mais do mesmo? Talvez, a melhor forma de ver isto seja a ironia. No dia das eleições legislativas portuguesas, que ocorreram no dia 10 de março deste ano, um jornal publicou uma charge definitiva. A charge consistia em uma frase, colocada ao centro – “Hoje é o dia das urnas” –, e no entorno uma série de sarcófagos. Fiquei reconfortado ao vê-la, por saber que não sou eu apenas a ver a política absolutamente mumificada, com as mesmas múmias despertadas, a cada período eleitoral, a nos afligir com seus pútridos bafos bolorentos de covas rasas.

As “novas qualidades” anunciadas no citado soneto camoniano parecem não existir, principalmente no que diz respeito à política brasileira, que muito fala de democracia e atenta contra ela a todo o instante. Haja maldição.

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  1. Helder Moura25/8/24 17:09

    Mestre Milton, mais uma aula magistral, no habitual estilo erudito sem afetação. Leitura obrigatória. Saudações

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