A cachaça é tão antiga quanto o descobrimento do nosso país, mas foi sempre sonegada da crônica historiográfica como se tivesse chegado no matulão dos degredados.
Era bebida de negro e dos que com ele, iguais em pobreza, levavam a pecha de cachaceiro, bebessem além da conta ou não, e chegou a valer como moeda ou escambo no tráfico negreiro. Moeda de troca, ardil usado na preia de escravos. Numa das “Cartas Chilenas”, o poeta Tomás Antônio Gonzaga denuncia veladamente o apelo ao efeito da cachaça para facilitar o tráfico negreiro: “Pois a cachaça ardente que o alegra,/ Lhe tira as forças dos robustos membros”. A cachaça teve essa cumplicidade.
É proclamada “bebida nacional brasileira” pela crônica estrangeira desde Saint-Hilaire, em anotações de viagem ao interior do Brasil. Mais do que nacional, como o vinho dos europeus, o uísque dos escoceses e americanos, a cachaça chegou a simbolizar o espírito de rebelião dos pernambucanos e nordestinos precursores das ideias republicanas no Brasil. A nossa caninha foi levantada nos banquetes e reuniões conspiratórias como brinde patriótico. Está em Gilberto Freire, está em Câmara Cascudo: “Bebida dos patriotas, recusando os vinhos estrangeiros, especialmente os portugueses”. Houve um padre João Ribeiro que ficou na memória de dois séculos pela paixão afrontosa (para a época) como levantava seus cálices cintilantes de cachaça em brindes ousados à República de 1817.
Gilberto Freyre / Saint Hilaire / Câmara Cascudo UFPE/UFRN
Com a abertura dos portos, a cachaça já entrava na nossa pauta de exportações, sendo raro o engenho do sul ou do nordeste que não moesse para cachaça. Henri Koster, “o mais autorizado informante estrangeiro sobre o Nordeste do Brasil”, português filho de inglês com engenho em Pernambuco, devia não só beber, como fabricar a jeribita incluída com esse nome no vasto rol dos seres e das coisas do poema “Verdades Miúdas” de Gregório de Matos.
Vem o Sul, já na segunda metade do século passado, e veste a camisa da cachaça. Antecipa-se a nós no marketing de venda e na consagração da bebida com foros de Academia. O mesmo não se deu com a memória escrita da Paraíba, que se acanhava de mencionar essa sua riqueza, modesta em canadas, mas “um prodígio de qualidade” na aceitação do povo e mesmo da família patriarcal que bebia suas boas doses por trás das portas.
Sempre retraída, a Paraíba, que pelo doce de sua cana chegou a dar nome à primeira destilação em terras de Pernambuco, precisou de quatro séculos para assumir o culto a sua bebida em status de Academia. Deixou que o Rio se antecipasse a esse pioneirismo. Como se antecipou nessa proclamação um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Rubem Braga:
“Foi com a cachaça que o brasileiro pobre enfrentou a floresta e o mar, varou esse mundo de águas e de terras construindo essa confusão meio dolorosa, às vezes pitoresca mas sempre comovente a que hoje chamamos Brasil”.
Estou certo, meus confrades da Academia Paraibana da Cachaça: Germano Toscano de Brito, Nairon Barreto, Fernanda Santiago, Carlos Batinga, Marize Barreto, Manoel Abrantes, Júlia Baracho, Vicente Lemos, e demais acadêmicos?
* Texto originalmente publicado em A União