Eu soube de Luís, um velho amigo. Velho mesmo, posto que eu o conheci por volta dos meus doze anos de idade. Na ocasião, ele tinha uns 18 e havia saído da zona rural com um dedo a menos: o indicador da mão direita então decepado por uma daquelas máquinas desfibradoras de sisal. Desembarcado do trem da Rede Ferroviária do Nordeste S/A, a Refesa da saborosa pronúncia do interior, entrei em casa e tomei a bênção materna. “Vá falar com seu pai antes de desfazer a mala. Ele está na Padaria”, recomendou dona Vininha.
Quem ali estava era Luís. Apresentei-me e ouvi que meu velho logo estaria de volta da prosa rápida com um companheiro de pescaria. De pronto, simpatizei com aquele moço. Era educado, atencioso e conversador. Adivinhara quem eu era assim que cheguei ao balcão do estabelecimento do meu pai. Já sabia do meu nome e que eu estaria de volta das férias escolares, no Recife, onde uma tia me abrigava.
Sou assim. Não consigo esquecer daquelas e daqueles com os quais dividi bons momentos. E quero acreditar em que isso, longe de ser coisa apenas minha, aconteça a todo mundo. De repente, sem mais nem menos, nos vem à memória aquela pessoa com quem, em passado distante, tivemos convivência prazerosa, apesar de curta e episódica. Não é mesmo?
De uns dias para cá, passei a me preocupar, frequentemente, com Luís. O que a vida a ele reservou, que família constituiu, se obteve um bom emprego e se ainda é vivo são questões que eu desejei que fossem respondidas por alguém de credibilidade. Não por qualquer dos três amigos de infância que há pouco visitei. Estes me deram como certa a morte de quatro antigos alunos do Grupo Escolar a cujo lado nos sentamos durante as séries iniciais do curso primário por mim concluído no Recife. Estão todos vivos, ao que outras pessoas me disseram. Infelizmente, há gente assim: ou não confere o que escutou antes de prestar informação desse gênero, ou gosta mesmo de matar os outros.
De qualquer modo, repito, eu soube de Luís. Ele, já viúvo, morreu na própria cama cercado por filhos, genros, noras e netos, no bairro do Morumbi, em São Paulo. Mas, preciso assinalar que não ouvi isso de gente com carne e osso. Foi uma voz nítida, ao ponto do espanto e do arrepio, que em sonho me trouxe essa notícia triste, por um lado, mas reconfortante, por outro. Meu amigo, que bom, vencera na vida.
Saíra da desfibradora que cortava dedos e da padaria que pagava pouco para os guetos paulistas, destino quase invariável dos que fogem da pobreza. Ali, viveu como pedreiro até o momento em que a graduação em engenharia civil a ele permitiu voos profissionais mais elevados. Passado o tempo, virou empreiteiro e casou-se já quarentão, quando tinha casa em bairro de ricos, como assim era o Morumbi daqueles dias.
A voz que me soprou tudo isso me pareceu honesta, segura, confiável. Timbre e volume agradáveis, dicção perfeita. As almas devem falar assim, calma e pausadamente, a fim de que não se perca a mínima palavra das suas mensagens.
E, de Luís, aquela voz parecia entender muito bem. O que descreveu lembrou-me, de fato, o moço corajoso, determinado, esforçado na busca dos seus objetivos. Na mocidade, findo o turno de trabalho na Padaria, ele queimava as pestanas para passar nas provas do Curso Madureza. Falo do ensino à distância que permitia a jovens e adultos a conclusão dos 1º e 2º Graus, na metade do tempo. Meu amigo tinha vontade de aprender. E tinha pressa.
Nunca estragou uma página sequer dos gibis que eu a ele emprestava sem o mínimo receio. E tratava com igual zelo as páginas de “O Cruzeiro”, revista com a maior circulação do mercado editorial brasileiro chegada às nossas mãos depois da leitura do assinante, o Padre Gomes.
Foi este mesmo Luís quem na vida real me conduziu à Biblioteca Pública instalada na Prefeitura da nossa pequena cidade, de onde também passei a retirar livros do Ciclo da Cana de Açúcar escritos por José Lins do Rego. “O autor é pilarense”, ensinou-me, sem esconder o orgulho do conterrâneo, como se a mesma origem nos fizesse igualmente famosos e importantes.
Todos, lá em casa, gostávamos dele. Dormia num quartinho dos fundos da Padaria e só não o tínhamos à mesa, diariamente, porque preferia passar os fins de semana com os pais, não sei se por saudade, ou por entender que sua ajuda na roça, episódica que fosse, era indispensável à família.
Eu estava na escola recifense, antes das férias de fim de ano quando soube do seu pedido de demissão. De imediato, lastimei a perda do amigo com quem poderia falar de música, cinema e livros. Ele tomaria o rumo de São Paulo em busca da boa sorte obtida, quem sabe, de modo muito melhor do que a imaginada.
Isso, se não passar do desvario puro e simples a voz que me prestou tais informes ao longo do sonho em que também fui reconduzido à casa paterna com meus pais ainda vivos e os irmãos por perto. Isso, se eu não houver projetado o meu desejo de uma vida próspera e feliz para ele e os seus. Acontece que foi muito real aquilo que escutei antes de despertar com o coração acelerado.
Eu fora dormir no início da madrugada, ao cabo da visita, também prazerosa, de um primo do interior com quem dividi meia garrafa com selo de 12 anos. Comemorávamos nosso reencontro e os ticos de férias do trabalho que ainda me restavam. Pelo sim, pelo não, nunca mais compro desse uísque.