Eram os tumultuados e confusos anos 70... E eu lembro bem de uma miscelânea de imagens daquela época vomitada em preto e branco através do tubo de imagem da TV. Guerra do Vietnã, o Ira na Irlanda, John Lennon, um Papa que morria e um novo que sorria, mísseis apontados para o céu, bandeiras e discursos, o rebolado e a morte de Elvis Presley, ruas ocupadas e os cassetetes impondo uma “ordem”. Por outro lado, a mente captava ondas sonoras de uma caixinha mágica chamada rádio. Elas ainda repercutem nos meus ouvidos como se eu permanecesse nos agitados anos daquela década.
À época o som que eu ouvia ainda era mono, a qualidade não era tão boa e o volume era até baixinho. Foi quando escutei pela primeira vez, lá pela metade dos anos 70, a história do Maluco Beleza Raul Seixas dizendo que era a mosca que pousou na sopa (“Mosca na Sopa” do disco “Krig-há, Bandolo!” de 1973).
A imagem nojentinha também era perfeita em suas metáforas. A mosquinha que incomodava o alimento, o regime, a dita ordem e até os meus fascinados tímpanos. As batidas da canção grudaram aos meus ouvidos. Claro, só fui entender o que significava a repetição “eu sou a mosca que pousou em sua sopa” muitos anos mais tarde.
E tome o “Zum, zum, zumbizar” da mosca de Raul Seixas nos rádios, discos e vídeos. Mosca que foi um “Carimbador Maluco”, “Gita”, “Ouro de Tolo”, “A Maçã”, “Capim Guiné”, “Sociedade Alternativa”, “Tu És o MDC da Minha Vida”, “Medo da Chuva”, “Al Capone”, “How Could I Know”, “O Trem das 7”, “Aluga-se”.
O baiano Raulzito juntou nas suas canções, muitas em parceria com Paulo Coelho, do rock ao baião, do forró às batidas afros do candomblé, do brega à Jovem Guarda. Ele mesclou nas letras as imagens que captava à sua volta. Astronauta, banheiro, contas para pagar, Al Capone, domingo, Marte, costumes e "descostumes" num grande caldeirão e fez, com ingredientes muitas vezes improváveis, uma sopa musical deliciosa.
A icônica entrevista à TV Globo em plena orla carioca, com dezenas de pessoas como testemunhas, após ter o carro danificado pelo avanço do mar provocado por uma maré cheia, é mais um exemplo da irreverência, mas também da consciência do Maluco Beleza. Na ocasião, Raul Seixas lamenta os danos ao carro, mas não se queixa da natureza e dispara sobre o aterramento do mar e a especulação imobiliária à beira-mar para afirmar categórico: “A natureza está certa!” (No YouTube tem registros).
Quando “Mosca na Sopa” driblou a censura militar e deu os primeiros voos, com os meus poucos anos de vida ainda, eu não entendia o que era o toque do candomblé, a ditadura militar e o que se passava dentro e fora dos porões brasileiros. Raul Seixas foi um dos que, feito mosca na sopa, “incomodaram” meus ouvidos com sua criatividade, irreverência, ousadia e ajudaram a armazenar sons, vozes, melodias e alguma informação na cabeça.
No próximo dia 21 de agosto chegamos a 35 anos sem o corpo físico de Raul Seixas. Morto em 1989, vítima do álcool e dos excessos da sua vida, o Maluco Beleza ainda ecoa como um capítulo marcante como o Pai do Rock Nacional.
Um gênio da música? Não iria a tanto. Porém, Raul Seixas é (sua obra persiste) um roqueiro brasileiro de mente aberta e fervilhante, o Maluco Beleza, uma necessária leitura e um jeito de olhar a sociedade ainda em busca de alternativas em meio a um mundo repressor. Por isso, como bem frisa Zeca Baleiro: “Toca Raul!”