Zé de Dó, ex-cangaceiro, era um sujeito muito esquisito. Jeitão desconfiado, cabeça baixa e de pouca conversa. Movia-se a passos firmes, talvez para se livrar dos curiosos e de perguntas impertinentes. O olhar de gavião varria o horizonte. Um solitário. Nas suas poucas andanças na cidade, sempre era visto desacompanhado, nem um familiar, nem um conhecido, resolvia uma coisa e outra, adquiria os mantimentos na bodega de seu Sitônio, coisa de pouca monta, esquentava o couro com duas ou três lapadas de cachaça, e se largava de volta para o sítio Umbuzeiro, município de Conceição do Piancó, onde habitava com a mulher e dois netos.
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Quando dava de aparecer na cidade, o ex-cangaceiro causava alvoroço. Muitos se trancavam, mulheres e crianças sumiam, uns poucos permaneciam nas suas atividades sem dar atenção à boataria.
Mal afamado, até o nome do empestado causava arrepio. Quando sucedia de ser citado numa conversa, alguns se benziam; apesar de nunca ter tocado num fio de cabelo de ninguém dali, nunca ter levantado um dedo, tratava a todos com respeito. A cara feia era de nascença, não tinha como reparar. Um caso grave do passado, que se saiba, foi em defesa da honra, e já havia se diluído com o tempo. Entrou para o cangaço por pura necessidade, para não morrer.
Na época do sucedido que causou uma reviravolta em sua vida, e o arrastou para o cangaço, tinha pouco mais de vinte anos. Franzino e caladão, levava uma vidinha pacata de casa para o trabalho ao lado da família; o pai, Manuel de Dó, meeiro na fazenda Umbuzeiro; a mãe, dona Mariquinha, cuidava da casa e tecia renda de bilros para ajudar nas despesas, e uma irmã, Dorinha, moçoila, menor de idade.
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E deu no que deu.
Ninguém acreditava que o sonso do Anacleto Pereira fosse capaz de tamanho desatino. Agora, o mal feito consumado, só havia um remédio para sanar a ofensa: era fazer o casamento. Feito o casório botava-se uma pedra em cima, e não se falava mais no assunto.
Mas o pior estava por vir, o calhorda do Anacleto se negou a reparar o mal feito, anoiteceu e não amanheceu, foi acobertar-se junto a uns parentes ricaços lá para as bandas de Pernambuco. Naquele tempo, a honra se lavava com sangue. E, Zé de Dó, paciente que só ele, soube esperar.
Passado um bom tempo, o caso de Dorinha caiu no esquecimento; menos para uma pessoa, que continuava vigilante com a desonra da família a cutucar a sua memória, a exigir desforço. E esse dia chegou. Boquinha da noite de um domingo festivo, uma trágica notícia sacudiu a cidadezinha. Anacleto Pereira, depois de uma visita à família, voltava fagueiro para o seu esconderijo, quando numa porteira do caminho, uma lâmina afiada, transpassou-lhe o peito esquerdo. Foi uma facada certeira, dada com gosto, carregada de ódio acumulado. O inimigo espichado aos seus pés, nos estertores, o sangue a jorrar aos borbotões; Zé de Dó limpou a arma numas folhas de mato, e pensou: ¨Agora podia andar de cabeça erguida, olhar para as pessoas sem medo de ser taxado de molenga¨. Deu uma olhada ligeira no defunto e desapareceu na caatinga.
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Bem alimentado, refeito, chegou a hora de partir. Ali, não podia ficar; se não bastassem as batidas policiais, os inimigos farejavam por todos os recantos. Deixou escurecer e ganhou a estrada. Agora, menos tenso, bem recomendado pelo padrinho seguia para Triunfo do Pajeú, gozar da proteção do coronel Quincas da Serrinha, coiteiro, com quem trocava favores.
Não demorou muito para chegar as primeiras notícias de Zé de Dó, e não eram nada boas, o cabra estava metido até o pescoço no cangaço. Dona Cotinha, sua avó, prometia que enquanto fosse viva mal algum o atingiria. A velha benzedeira era muito respeitada na região, a fama de curandeira e macumbeira se alastrava. Curava com reza forte: dor de dente, quebranto, olho gordo, espinhela caída, dor nas cadeiras e expulsava os maus espíritos. Muitos diziam que Zé de Dó, seu neto, tinha o corpo fechado, a velha havia invocado as orações de São Cipriano, rezas bravas, para livrá-lo de qualquer mal e torná-lo invisível aos olhos dos inimigos.
Tropeiros, tangerinos e mascates eram os portadores das más notícias. Os boatos eram que Zé de Dó havia se juntado a um grupo de cangaceiros que escapou do massacre de julho de 1938, em Angico, (SE), e vagavam sertões adentro. O bando, agora,
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As conversas corriam soltas, cada um dava tratos à imaginação. Diziam até que Zé de Dó era hoje um homem de muitas posses, levava uma vida de lorde, havia enriquecido com o ouro e o dinheiro que havia juntado dos assaltos e saques aos fazendeiros da região e se largara para as bandas de Goiás, onde gozava de estima e consideração.
Muita gente não acreditava nem um pouco nessas histórias, sua avó era uma delas. A família desolada para um canto, enquanto dona Cotinha não batia a passarinha, rosário na mão, não aluía a cabeça.
Depois do massacre a Lampião e a seu bando na gruta de Angico, em 28 de julho de 1938, e Corisco acuado nos grotões da Bahia tombar crivado de balas, em 25 de maio de 1940, o cangaço que já vinha num processo decadente, perdeu de vez a referência, deu o último suspiro. Alguns remanescentes foram abatidos ou presos e a maioria debandou.
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A escolha era voltar para casa e se enfurnar no Umbuzeiro. Foi uma travessia longa e penosa, todo o cuidado era pouco, as volantes farejavam bibocas e grotões, não ficava lugar, a ordem era prender ou matar, acabar com a raça de cangaceiros. Passava por longe das cidades e povoações, via inimigos por toda parte. Os coiteiros tomaram chá de sumiço. Não podia contar com ninguém. Passou fome e sede.
Boa pontaria se alimentou muito de caça, quando dava gatunava comida das panelas de alguns casebres, algumas vezes matou a fome braba nos roçados com milho seco nas espigas.
Foram dias de muito aperto. Sempre em alerta, quando ouvia vozes, passos ou ruídos, cortava caminho.
Certa ocasião, em plena caatinga, sol de meio dia, tirava um cochilo à sombra de um juazeiro, quando foi despertado por um forte rumor de tropa em disparada; de um salto pôs-se em pé de arma engatilhada. Pensou logo na volante
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Depois de mais uns dias de jornada, de cima da serra do Sobrado, viu surgir uma mancha cinzenta no meio da mata seca. Sorriu aliviado. O Umbuzeiro estava ao alcance da mão.
Os primeiros dias e meses não foram nada fáceis, passava o dia em casa na espreita, à noite dormia no mato, sabia que era odiado e caçado. Apesar da cautela, a notícia alcançou a cidade e causou insegurança. Conceição do Piancó viveu momentos de aflição e revolta. As ruas ficaram desertas, ninguém se atrevia a sair de casa á noite, mulheres e crianças só punham os pés na rua bem acompanhadas; as portas cerradas. Instalou-se o impasse: a população temia a presença do ex-cangaceiro; este, desconfiava da própria sombra. A polícia nada podia fazer, não havia inquérito ou denúncia contra ele, nem testemunha que o acusasse, como a maioria dos ex-cangaceiros, Zé de Dó, gozava de plena liberdade.
Se não bastasse o temor já existente, não faltavam os loroteiros. Uns, afirmavam que Zé de Dó rondava com um bando pelas redondezas, e que de uma hora para outra poderiam saquear a cidade; outros, diziam que foram abordados por gente estranha, com converseiro mole, certos agrados, para saber do seu paradeiro. Era comum os relatos de tiroteios no meio da noite, ou durante o dia, de emboscadas, de balas a zunir em seus ouvidos, e o tinhoso escapar ileso, sem um arranhão, parecia que tinha pacto com o demônio. Essas proezas, embora de cunho duvidoso, instigava a crença do ¨corpo fechado¨, da proteção de sua avó.
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Com o tempo a poeira baixou, os ânimos se acomodaram, as lembranças do cangaço se dissiparam; Zé de Dó, pé aqui pé acolá, aos poucos se chegava à cidade. Por fim, passou a frequentar regularmente. Mas, nunca perdeu a má fama, havia sempre aquela cisma de que algo ruim poderia suceder, sua presença deixava o ar carregado.
Morreu de velho lá no seu canto. Até prova em contrário, o único cangaceiro natural de Conceição do Piancó, apesar da vizinhança com o Pajeú pernambucano, região de muitos e afamados cangaceiros, como Lampião, Sinhô Pereira, Luis Padre, Antônio Silvino, sem falar na arraia miúda.
