Assistindo ao jornal da Band sobre a comemoração de 30 anos do Plano Real, pude verificar como a imprensa pode distorcer os fatos com tanta facilidade. De acordo com a reportagem, a figura mais importante na criação do Real, foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o que não é verdade.
Em um dos capítulos de seu excelente livro “Memórias” lançado no final do mês passado, pela Editora UNESP, Ricupero conta como foi convidado pelo presidente Itamar Franco para o cargo de Ministro da Fazenda: "[...] Gostaria que o senhor ficasse no lugar de Fernando Henrique, que terá que se afastar para concorrer às eleições. Lembra quando lhe telefonei em Washington, meses atrás, para convidá-lo a assumir o Ministério da Fazenda? [...]". Embora Ricupero tenha recusado esse convite pelo menos cinco vezes, justificando ao presidente que não era economista, nem entendia de finanças, Itamar finalmente contestou dizendo enfaticamente: "[...] Não insista, não quero ninguém da equipe, desejo alguém que deva a escolha a mim, não ao Fernando Henrique [...]".
Ricupero em suas memórias comenta: "[...] Se o Real desse certo, boa parte de mérito iria de qualquer modo ao chefe do Governo (Itamar Franco) e a Fernando Henrique [...]. Se a moeda fosse por água abaixo, a culpa seria minha [...]".
No livro A real história do Real, a autora jornalista e economista Maria Clara R. M. Machado descrevendo sobre a comunicação do plano, cita:
[...] a nova moeda foi tão rapidamente aceita pela população, chegando a essa rapidez a surpreender a equipe econômica, que previa um processo de adesão mais lento só para outubro, mês do primeiro turno das eleições, uma queda mais acentuada da inflação. Tanto assim que se imaginava [...]. É incontestável, portanto, a contribuição que Ricupero deu, já em julho, à virada da candidatura de FHC [...]. Itamar o chamava de “O Apóstolo do Real”, por passar um bom tempo a peregrinar pelo país, buscando adesões à causa da estabilidade [...].
Logo que me aposentei da OPAS/OMS, por ser funcionário de carreira, tive direito a associar-me à AAFIB (Associação de Antigos Funcionários Internacionais do Brasil), com sede no Rio de Janeiro. Esta entidade, vez por outra, promovia palestras dos associados. E um dos conferencistas, era Rubens Ricupero. Por esquecimento, esqueci de anotar na minha agenda a hora de sua penúltima apresentação sobre a Guerra da Ucrânia, perdendo essa excelente oportunidade. Perguntei ao colega Vanderlei de Marque, ex-funcionário da UNICEF e amigo de Ricupero, se essa palestra não havia sido publicada, a qual me foi enviada por e-mail quase de imediato.
O original que recebi estava escrito por Rubens em inglês com cinco páginas. Ocorreu que no dia 28 de fevereiro de 2022, Ricupero havia escrito um artigo no Estadão, também sobre o tema da Guerra da Ucrânia, além de ser entrevistado neste mesmo período na Bandeirantes, no programa das 20 horas de cada domingo, sobre este tema. Por enorme coincidência, havia sido publicado dois dias antes (26 de fevereiro) no Blog Carlos Romero, um texto de minha autoria que também se referia à Guerra da Ucrânia, intitulado Joseph Stalin ou Vladmir Putin. No início desse artigo, eu contava uma história sobre a filha de Stalin, Svetlana, que cresceu no Kremlin, ocorrida entre seus sete a onze anos (começo de 1930).
Resolvi agradecer por e-mail a Ricupero aproveitando a oportunidade para enviar meu artigo, além de incluir cópia de sua palestra, já traduzida para o português.
Respondeu-me imediatamente com os seguintes dizeres: "[...] muito obrigado pela mensagem, pelo envio do artigo e pela amável e generosa iniciativa de traduzir o texto que preparei sobre os antecedentes da atual crise. Apreciei imensamente seu artigo, que contém informações saborosas que eu desconhecia, como, por exemplo, as relativas à filha de Stalin. Também fiquei muito sensibilizado com sua tradução de meu breve texto. Sim, gostaria muito que o divulgasse [...]".
Na sua última conversa com os membros da AAFIB, no segundo semestre de 2023, Ricupero falou sobre o livro de memórias que estava escrevendo e que deveria ser lançado no final desse ano. Nos adiantou dois capítulos. Um deles foi sobre o fato de haver jantado, ele e sua esposa, com Frank Sinatra.
Ricupero estava como embaixador em Washington há pouco mais de um ano. Sucedeu a Marcílio Marques Moreira, que por sua vez substituiu a Zélia Cardoso de Mello no Ministério da Fazenda. No período em que ele estava sendo pressionado para assumir o Ministério da Fazenda, a pressão foi tão forte, que ele, como católico praticante, foi até a uma igreja próxima da sede da embaixada e, posteriormente à catedral de São Mateus, para rogar a Deus que lhe desse forças para dizer não a esses insistentes pedidos. Sentia-se perplexo e desorientado, como escreveu no seu livro de memórias.
Em um desses dias ele ainda tinha que oferecer na sua residência um almoço aos embaixadores latino-americanos. E, para completar, havia chegado para se hospedar no apartamento de Ricupero, Ruth Escobar, trazendo a tiracolo Shirley MacLaine. Ruth Escobar havia sido sua companheira de adolescência, do grupo dos “adoradores de Minerva”. Esse pequeno bando de aspirantes a intelectuais que não arredavam pé da Biblioteca Municipal Mário de Andrade em São Paulo, local onde reuniam-se com certa frequência na sua juventude para bater papo em torno da estátua da deusa da sabedoria no hall de entrada. Ruth aproximou-se de Shirley MacLaine, devido ao interesse das duas por fenômenos de parapsicologia. Shirley deveria passar uma semana em Washington para um show com Frank Sinatra. E não queria se hospedar em hotel para evitar o assédio dos fãs e da imprensa. Segundo Ricupero, elas poderiam se hospedar, com o conforto um tanto rústico, no último andar de seu apartamento.
O Washington Post, maldosamente, noticiava que Sinatra, com 76 anos, era quase mais velho que o Warner Theatre, local onde deveria cantar. Além disso, o periódico ironizava que ele não se havia beneficiado da recente restauração do teatro, no valor de sete milhões de dólares. Terminado o show, Frank Sinatra convidou Ricupero e sua esposa Marisa, juntamente com Ruth e Shirley, para jantarem no mais luxuoso restaurante chinês da cidade. Sinatra estava sentado em um sofá, rodeado da camarilha que o acompanhava por toda a parte. Eram tipo durões de Nova York, ítalo-americanos com ar de mafiosos de sucesso. Todos bebiam bourbon, gim, uísque, só bebidas fortes com álcool para valer. A maior preocupação de Sinatra no começo do jantar era descobrir algum bar que ficasse aberto a noite toda. Washington, nessa época, tinha fama de cidade provinciana e praticamente todos os restaurantes fechavam em torno da meia-noite. Posteriormente, Shirley contou ao casal que a semana do show havia sido complicada. Sinatra passava a noite em bares, acordava tarde, não se preocupava em ensaiar e frequentemente esquecia a letra das músicas. Era o prenúncio do crepúsculo do ídolo, que morreria menos de seis anos depois, em 1998.
O penúltimo livro de Ricupero foi publicado em 2017, com o título "A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016", pela Versal Editores Ltda. Ricupero tinha muita vontade de escrever este livro, porém, inicialmente conta no seu livro “Memórias” que o desânimo foi grande, devido à enorme tarefa que teria de cobrir, de 1750 a 2017, mais de duzentos e cinquenta anos de história. Seria um livro que servisse de compêndio aos estudantes e que tivesse como enfoque a história das relações internacionais do Brasil, como parte integral da evolução do povo brasileiro. Seria um livro de história com uma perspectiva diferente, a das relações de influência recíproca entre o Brasil e o mundo. Sua ideia era que o Brasil se destinava a ser uma grande potência sem poder. Sem bombas atômicas, armas de destruição em massa etc.; não por incapacidade tecnológica, mas por escolha. Justificava que nosso país vive em paz com nossos dez vizinhos há quase 150 anos. Em minha modesta opinião, este é um livro que todos devem possuir. O objetivo desse livro foi além: fazer-nos ver como a diplomacia brasileira contribuiu para a formação da identidade e do caráter do país, ajudando a dar forma a seus valores e instituições.
No seu recente livro “Memórias” com pouco mais de 700 páginas, nos mostra toda sua vida e seu trabalho digno e honrado em prol da humanidade, com todos os percalços que a vida pode oferecer a uma pessoa.
Oriundo de família italiana, precisamente de Nápoles, conta em detalhes a história de seus antepassados, os italianos que imigraram para o Brasil. Conseguiu muita informação sobre seus parentes graças às histórias que sua mãe Assumpta Jovine contava, além dos cadernos de notas deixados por ela. Em 1995, após exatos 100 anos da chegada de seus antepassados ao Brasil, ele se tornava embaixador do Brasil na Itália onde seus avós haviam partido como gente indesejada, imigrantes de terceira classe. Morou na infância e juventude no bairro do Brás em São Paulo. Nesse período, ouviu na sua casa o relato das últimas batalhas da 2ª guerra mundial, a ocupação de Berlim, o suicídio de Hitler e a execução de Mussolini. Com 9 anos, já alfabetizado, acompanhou a descrição do julgamento dos criminosos de guerra nazistas em Nuremberg. A partir dessa idade leu todo tipo de histórias em quadrinhos, livros presenteados por seu pai, “Os melhores contos russos” (franceses, ingleses, etc.), além de todos os livros de Monteiro Lobato. Ficou tão fã do autor de “Reinações de Narizinho” que foi sozinho ao velório de Monteiro Lobato na Biblioteca Mário de Andrade, onde costumava frequentar, e de lá seguiu a pé o cortejo até o cemitério da Consolação, quando tinha apenas 11 anos de idade. Testemunha no seu livro que é muito grato aos irmãos maristas (segundo ele, a despeito de muitas experiências ruins de outras pessoas com escolas de padres e freiras) pela educação que teve durante parte do primário e todo o ginásio e acima de tudo, pela extraordinária bênção de haver recebido uma educação religiosa.
Na era das incertezas resolveu entrar em um cursinho para se preparar para o vestibular de engenharia. Logo sentiu que sua seara era outra. Enquanto os colegas insistiam em discutir o último problema de matemática ou física, ele só queria discutir política. Foi sua primeira de muitas derrotas. Começou a se desesperar na busca de um emprego e em 1954 resolveu prestar vestibular de última hora na Faculdade de Direito do largo de São Francisco, aprovado posteriormente. Em segunda chamada fez também o vestibular do curso noturno de Letras Neolatinas. Em 1956 iniciou o estudo de Ciências Contábeis e Atuariais na USP, com a ideia de conseguir um trabalho. Também deu início ao curso de ciências econômicas, na antiga Faculdade de Economia e Administração da USP. Na prática, só concluiu um, o de Direito. Ficou decepcionado com a universidade. Sua expectativa era bem maior. Inscreveu-se em 1958, enquanto cursava a Faculdade de Direito, para exame no Instituto Rio Branco por influência de seu dileto amigo Arrhenius Fábio Machado de Freitas, profundo conhecedor de latim, já aprovado anteriormente nesse exame. Arrhenius enviou para ele os programas completos, a bibliografia para a preparação e cópias mimeografadas das provas. Os exames eram muito difíceis. A título de exemplo, a prova de francês escrito era verter para o francês o famoso trecho de Euclides da Cunha: “O sertanejo é antes de tudo um forte...”. Passou, mas a maioria foi reprovada, o que fez com que a direção modificasse o critério de correção de maneira mais branda.
Rubens Ricupero nasceu em São Paulo em 1937, bacharelou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, ingressou no Instituto Rio Branco em 1958 e iniciou a carreira diplomática em 1961. Embaixador do Brasil junto à ONU (Genebra, Suíça), nos Estados Unidos e na Itália, foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), em Genebra, de 1995 a 2004. Exerceu também funções de governo, tendo sido o primeiro ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, ministro da Fazenda durante a implantação do Real, subchefe da Casa Civil e assessor especial do presidente José Sarney. Durante a campanha e após a eleição indireta de Tancredo Neves para a Presidência da República, em 1985, atuou como seu assessor para temas de política exterior, experiência que registrou no livro "Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo Neves" (2010). Foi ainda Diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), professor do Instituto Rio Branco e da Universidade de Brasília. E colaborador dos mais influentes órgãos de imprensa do país e de publicações especializadas nacionais e estrangeiras. É autor de nove livros sobre história diplomática, política, comércio e economia internacional. Com destaque para: "Rio Branco: o Brasil no mundo" (2000) e o "Brasil e o dilema da globalização" (2001).
Logicamente, não há espaço para continuar a escrever maiores detalhes. Portanto, quem estiver interessado na história de vida e nos feitos deste grande brasileiro, terá que ler suas “Memórias” na íntegra.