Estava ali, rosa desfolhada. Cuidava de suas ausências, entre o quartinho e o terraço, gestos e sons guturais. A custo se deitava na re...

Rosa desfolhada

velhice nostalgia idade
Estava ali, rosa desfolhada. Cuidava de suas ausências, entre o quartinho e o terraço, gestos e sons guturais. A custo se deitava na rede armada. Ali, estendia as recordações, no remanso de um passado variado em família, amigas de juventude, passeios, enfim, enquanto lúcida podia movimentar-se, ao trajeto da vida longa. Viu surgirem os cabelos brancos, a pele se tornando rugosa, o corpo
velhice nostalgia idade
Celyn Kang
combalido e as rendas da flacidez nos braços. O calendário dos anos a trouxera através de nove décadas e meia. O máximo que fazia era folhear revistas, repassando figuras, que se tornavam embaçadas, gelatinosas em seu pouco ver. Aos domingos, cuidada pela funcionária, lhe era posto um vestido meio esgarçado na gola e gotas de perfume, após o sacrifício de um banho que lhe atiçavam as dores do reumatismo. Sentada na cadeira de balanço fingia esperar visitas da família. Repassava os rostos distantes. Fazia-os próximos como que a delirar. Chamava pelos nomes que não lhe davam respostas. Ela via os familiares em derredor. Somente ela.

Vinha, então, a semana de esperança seca. Entre segunda e sábado, apenas os companheiros da casa grande, enfurnada num matagal, eram solidários nas mazelas sortidas, uns puxando o passado, outros contando anedotas, outras recordando o dia em que debutaram no clube elegante. Um esforço de sobrevivência na nostalgia. Sempre havia um rádio ligado, o riso de um armador, o ruído de soluços de alguém a curtir saudades.

velhice nostalgia idade
Abbas Tehrani
Assim a Rosa continuava, mesmo com o pistilo deformado e as pétalas comprometidas. Até que adoeceu gravemente. Precisou ser conduzida ao hospital. A comoção de todo o corpo médico e de enfermagem aplicou doses de ternura nas veias dilaceradas da doente. Ela foi se restabelecendo. Tudo sanado. Estava de alta. Qual o parente, o filho, o neto, bisneto? Ninguém. Voltou ao abrigo para reatar, na ausência da família, o dia a dia de solitária velhice.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Anônimo2/7/24 22:05

    Muito triste 😢😢😢😢🧵🪡✂️

    ResponderExcluir
  2. Anônimo3/7/24 06:35

    Triste enredo, belo texto. Parabéns, Guerra. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir

leia também