O período da História que ficou conhecido como Renascimento e que se caracterizou por uma verdadeira revolução nas artes e na vida social da Europa deu início ao que se convencionou chamar de Tempos Modernos ou Idade Moderna. O aumento das populações e o crescimento das cidades, com a consequente necessidade de alimentá-las, fez com que os europeus buscassem encontrar terras por eles ainda desconhecidas e procurassem expandir o comércio, através do estabelecimento de novas rotas, com as regiões das quais já tinham conhecimento. O caminho para se conseguir essa expansão geográfica e comercial seria o Mar-Oceano e, como escreveu o historiador Oliveira Lima, a península ibérica, que em sua frente “estendia-se o grande mar [...] a predestinava para tais cometimentos”.
Durante o século 15, a utilização na navegação de instrumentos como a bússola, o astrolábio e o quadrante, a construção de embarcações do tipo caravelas e o crescente conhecimento do regime dos ventos e das correntes do mar levaram naus portuguesas para os arquipélagos do Atlântico e para a exploração da costa ocidental da África. Madeira, Açores, Serra Leoa, Congo foram sucessivamente alcançados pelos lusitanos até que, em 1488, o Cabo das Tormentas, no extremo sul do continente africano, foi contornado e se estabeleceu a rota marítima que ficou conhecida como “a carreira das Índias”. Esses sucessos culminaram, em 1492, “o ano em que o mundo começou”, como o historiador Felipe Fernández-Armesto denominou uma das suas principais obras, com a chegada do genovês Cristovão Colombo ao que se chamou “a quarta parte do mundo”, o Novo Mundo, mas que seria para os nativos do lugar, nas palavras do padre Antônio Vieira, um mundo “velho e muito antigo”.
O período considerado como o das Grandes Navegações e dos Descobrimentos, que foi contemporâneo do Renascimento, iniciou uma grande movimentação de pessoas no mundo, conforme escreveu o francês Serge Gruzinski no seu livro “As quatro partes do Mundo – História de uma mundialização”:
No Renascimento, homens e mulheres circulam às dezenas de milhares entre as quatro partes do mundo. São os principais atores dessa mobilização generalizada. Descobridores, conquistadores, missionários e burocratas, comerciantes e aventureiros de todo tipo, andarilhos e expatriados atravessam o Atlântico entre a Europa e a América”.
As viagens para as terras daquele Novo Mundo descoberto pelos europeus atraíam pessoas de todos os recantos da Europa, como foi o caso de um jovem de pouco mais de 20 anos, Hans Staden, morador de Homberg, pequena cidade da província de Hessen, localizada no centro da atual Alemanha. Em 1548, Staden chegou a Lisboa com a intenção de ir para a Índia, mas acabou embarcando como arcabuzeiro em uma nau portuguesa que ia para o Brasil carregar a valiosíssima madeira que era usada na época como corante no tingimento de tecidos, o pau-brasil.Staden faria, no ano seguinte, outra viagem ao Brasil, bem mais demorada do que a primeira, e de volta a Alemanha resolveu escrever um relato das suas aventuras durante o período de cerca de sete anos em que passou em terras brasileiras. O livro de Hans Staden, que foi publicado em 1557, tornou-se um dos maiores sucessos editoriais, de todos os tempos, em todo o mundo. No mesmo ano da sua publicação, a narrativa de Staden teve mais três edições na Alemanha e seguiram-se outras nas mais diversas línguas. No Brasil, a obra somente foi publicada em 1892 e a partir daí várias edições se sucederam. Atualmente, o livro está disponível em diversos formatos: de bolso, e-book, em quadrinhos, em adaptação ilustrada feita pelo escritor Monteiro Lobato, entre outros.
Frontispícios da edição original (Alemanha, 1557) e das publicações do livro de Hans Staden na Argentina e no Brasil (1990).
“História verdadeira e descrição do panorama de uma terra de selvagens nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois do nascimento de Cristo em Hessen até este ano, visto que Hans Staden de Homberg em Hessen a conheceu por experiência própria e que agora traz a público com esta impressão”, era este o título original do livro de Staden que foi abreviado nas edições brasileiras para “Duas viagens ao Brasil”, “Viagens e aventuras no Brasil”, “Prisioneiro de índios canibais”, “Aventuras de Hans Staden” e “Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil”.O livro de Staden em que ele conta as suas aventuras no Brasil e descreve o período em que, por nove meses e meio, ficou como prisioneiro de um grupo Tupinambá esperando ser trucidado em um ritual antropofágico foi um dos primeiros relatos sobre os nativos da América a circular pela Europa. Para o historiador José Honório Rodrigues a obra “é uma página importante da História do Brasil, porque é a primeira descrição da vida e dos costumes selvagens. Até então nenhum europeu cujas reminiscências tenham chegado até nós, convivera entre os indígenas”.
Na sua primeira viagem ao Brasil, Hans Staden aportou em Pernambuco em janeiro de 1549. Naquela ocasião, os Caeté faziam um cerco ao povoado de Igarassu e Duarte Coelho, o donatário da Capitania, pediu a colaboração dos homens da embarcação de Staden para afastar os indígenas do local porque, conforme a narrativa do aventureiro alemão, “os habitantes de Olinda, frente à qual estávamos ancorados, não podiam socorrer a outra localidade, pois temiam eles mesmos sofrer um ataque dos indígenas. Partimos, quarenta homens de nosso barco, em ajuda aos colonos da localidade de Igaraçu”.
Após alguns combates, os Caeté abandonaram o cerco ao povoado e se afastaram da região. No relato de Staden, “os indígenas tiveram algumas baixas, mas nós, cristãos, não sofremos nenhuma [...] o comandante da localidade de Olinda nos agradeceu”. A embarcação em que Staden servia seguiu então seu curso para carregar pau-brasil em um local mais ao norte, na terra em que habitavam os Potiguara, em um “porto chamado Paraíba”. Na narrativa de Hans Staden do episódio o nome Paraíba apareceu pela primeira vez em letra de forma em um livro.
A Paraíba citada na edição original da obra de Hans Staden e na versão brasileira de 1900, elaborada pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Foi com a obra de Hans Staden que o meu saudoso amigo e mestre Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins iniciou a sua volumosa e inédita obra “Historiografia Colonial da Paraíba – Um ensaio de crítica histórica com uma contribuição bibliográfica”. Para ele, a narrativa de Staden, que antecede em três décadas e meia ao relatório jesuíta conhecido como o Sumário das Armadas, é o mais antigo relato sobre a Paraíba e a sua importância “é incontestável, seja do ponto de vista historiográfico, seja do ponto de vista histórico”.Como a narrativa de Hans Staden da sua passagem pela Paraíba não é muito extensa, passo a transcrevê-la utilizando a edição publicada, em 1930, pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo:
“Como partimos de Pernambuco, atingimos a terra dos Potiguaras na Paraíba e encontramos um barco francês, com o qual travamos batalha.
Navegamos quarenta milhas até um porto de nome Paraíba, onde carregamos pau-brasil e onde queríamos nos abastecer de mais mantimentos junto aos indígenas.
Ao chegarmos, encontramos um barco da França que estava carregando pau-brasil. Nós o atacamos e esperávamos tomá-lo; porém eles danificaram nosso grande mastro com um tiro e escaparam. Entre os nossos houve alguns mortos e alguns feridos.
Após o que, decidimos retornar a Portugal, pois devido a ventos adversos não podíamos retornar ao porto onde queríamos carregar os mantimentos. Assim navegamos sob ventos desfavoráveis e com mantimentos insuficientes em direção a Portugal e sofremos muita fome”.
Navegamos quarenta milhas até um porto de nome Paraíba, onde carregamos pau-brasil e onde queríamos nos abastecer de mais mantimentos junto aos indígenas.
Ao chegarmos, encontramos um barco da França que estava carregando pau-brasil. Nós o atacamos e esperávamos tomá-lo; porém eles danificaram nosso grande mastro com um tiro e escaparam. Entre os nossos houve alguns mortos e alguns feridos.
Após o que, decidimos retornar a Portugal, pois devido a ventos adversos não podíamos retornar ao porto onde queríamos carregar os mantimentos. Assim navegamos sob ventos desfavoráveis e com mantimentos insuficientes em direção a Portugal e sofremos muita fome”.
A obra original de Hans Staden continha várias xilogravuras feitas com a sua orientação e uma delas se referia ao combate ocorrido na Paraíba entre a embarcação portuguesa em que ele viajava e uma nau com franceses que retiravam pau-brasil da região com a colaboração dos Potiguara. O episódio relatado por Staden comprova a presença de traficantes franceses no litoral da Paraíba pelo menos quatro décadas antes do início das guerras de conquista do território pelos portugueses e espanhóis. Embora houvesse um tratado (firmado na cidade de Tordesilhas) entre Portugal e a Espanha, com a aprovação do Papa, que dividia as terras descobertas entre os dois reinos ibéricos, os contrabandistas que retiravam madeira para as tecelagens do Norte da França não respeitavam a decisão papal. Para José Honório Rodrigues:
“Os conflitos entre os dois povos no Brasil e seus aliados indígenas rebentaram por toda a costa, numa disputa feroz de caráter econômico. A Relação de Hans Staden é um testemunho precioso destas invasões dos entrelopos franceses nos domínios ultramarinos portugueses”
O que atraía os contrabandistas franceses para a Paraíba era a qualidade do pau-brasil existente na costa paraibana que era de excelente proveito na tinturaria dando “cinco tintas”, ao contrário de outros que davam apenas duas, conforme descreveu o padre jesuíta autor do Sumário das Armadas. A situação, nas primeiras décadas do século 16, era de tal forma indefinida que o historiador Capistrano de Abreu usando a linguagem dos nativos brasileiros escreveu que “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos Péro (portugueses) ou aos Mair (franceses).