Foi Millôr Fernandes, com seu Pif-Paf, quem me chamou a atenção para a existência do Haikai, lá pelos começos de 1960. Falo dessa forma...

Poeta de três linhas

Foi Millôr Fernandes, com seu Pif-Paf, quem me chamou a atenção para a existência do Haikai, lá pelos começos de 1960. Falo dessa forma poética com origem japonesa, de extrema concisão e objetividade. Ainda menino, eu corria para a coluna que ele mantinha na Revista O CRUZEIRO, a publicação mais importante do mercado editorial brasileiro, sempre que me chegava às mãos um exemplar novo.

Millôr Fernandes ▪ 1923—2012 ▪ Arq. Nacional, 1959, via Wikimedia
Imagine-se o desafio de repassar emoções, queixas, sugestões, desejos, sonhos em três breves linhas. Millôr foi um mestre nisso.

Veja só:

No hall escuro o segurança mata o inseguro.


E este aqui:

E o medo que mete esse espelho que não reflete.


Outro mais:

Olho, alarmado, E se a vida for do outro lado?


É preciso contar que, além de Millôr Fernandes, outro personagem impulsionou, por quase 20 anos, as vendagens semanais de O CRUZEIRO. Muita gente também comprava essa revista, religiosamente, por causa do Amigo da Onça, criação imortal do pernambucano Péricles de Andrade Maranhão.

Péricles ▪ 1924—1961
O Amigo da Onça

Mas vamos ao primeiro, o criador do Pif-Paf, coluna que levava o pseudônimo Emmanuel Vão Gogo. Ali, Millôr contava histórias, inventava outras, debochava de situações diversas e, não raramente, de si próprio. Ah, sim, também compunha temas saborosos em versos mais extensos. Eis, pois, como explicou sua “incultura”.

Ler na cama é uma difícil operação. Me viro e reviro e não encontro posição. Mas se, afinal, encontro um cômodo, abandono e pego no sono.


É de Millôr que sempre lembro quando a vida e a ocasião mexem comigo. Então, à sua maneira e a anos-luz do seu talento, tenho virado um poeta sem fôlego, de versos curtos, um sujeito de três linhas. Para espanto meu, as brincadeiras sem maior pretensão depositadas no Facebook e nuns fundos de baú atestam o quanto já fiz isso. Vamos a algumas.

Quando a chuva então impedia as boas companhias e o pé na estrada.

Dia chato, feio e ruim mas não me mortifico. Ouço Chico e bebo gin.


Assim mesmo: um microambiente feito de cactos e suculentas.

Um terrário: a Caatinga no armário.
Ode a frutas descascadas.

A fome bate à porta e a natureza em tela jaz bem morta.


Cântico ao amanhecer em um dos melhores anos, o do nascimento do neto:

Cá para nós, é bela, ela, a aurora dos avós.
A sorte me havia disposto à lente o pouso da lua no topo de um edifício.

A lua, por certo, no seu ninho de concreto.


Quando o gênio criador do bom e velho Ziraldo recontou a origem do grito do Rei das Selvas.

Nessa vida vã, estou como Jane a reboque de Tarzan.
Um achado: dois retratinhos que se haviam emparelhado num velho álbum.

Em 3x4 revelado nosso encontro com o passado.


Noutra ocasião, a reforma trabalhista precarizava o emprego, enquanto a previdenciária espichava o tempo para a aposentadoria.

Temer, percebo, não é gente. É verbo.


Também, no transcurso de um 22 de Maio.

No Dia do Abraço uma gente bem vil sobraça o Brasil.


Em dezembro de 2017, sumia o gás de cozinha que, pela sexta vez, tinha o preço elevado.

Temer, rapaz, não solte gases, mas gás.


Uma propaganda nos conduzia, então, à Oktoberfest, de Blumenau.

A incerteza me remete à cerveja? À garçonete?
O gato doméstico, preso no apartamento com telas nas janelas e varanda, havia perdido seu quintal e seus muros.

Ex-gato de rua, coitado, põe na lua uns olhos de passado.


Quando a semana mal começa e a gente já pede que termine.

Segunda-feira bem cedo e o pé deste Banana tateia fins de semana.


Muitos, sem dúvida, já acordam assim: com dinheiro curto para uma semana comprida.

À segunda-feira, aos tombos me ergo sem eira nem beira.


Poeminha para um entardecer.

Ágil, ou tardia, a boca da noite engole o dia.


Legenda, em tempo de Covid-19, para um mosaico de antigas propagandas nos jornais e revistas:

Viu isso, Dona? Então, corra do corona.
Com os olhos, também, nos velhos reclames, assim chamados os anúncios dos anos de 1950/60.

Tudo isso já vi e, sem, apelo vejo: Envelheci.


Versinhos surgidos de um processo disentérico.

Velhice, atino, afrouxa a alma e o intestino.


De olho na lua durante a fase mais crítica da pandemia.

Branca, pura, muito longe e bem segura.
Ainda, nos dias amargos do Covid-19:

Isto, sim, alegria. Nem tudo é ruim na pandemia.


Em comemoração ao Dia do Fotógrafo:

Não mente o olho que perfura a lente.


Transcorria um tempo de desesperança:

Vejo eu no escuro lampejo algum de futuro?
Quando do rompimento da Barragem de Brumadinho, da Vale S.A., na última semana de janeiro de 2019. O desastre matou 272 pessoas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Sem que me cale, uma vida vale quanto, Vale?


Foi não foi, o despertar vem com surpresas.

Um beijo molhado acorda sem pejo este velho namorado.

Todos sabemos do dito popular: “Quem canta, seus males espanta”. Trata-se de prática recomendada, inclusive, aos desafinados. Creia: também tangem os problemas e enlevam os espíritos os que bem, ou mal, cometem seus versos. O importante é exaltar os bons momentos. E é debochar das crises e das encrencas. Experimente.

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  1. Eis o poeta revelado. Dizer mais com menos é uma arte. Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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    1. - Ôba! Abraço forte, Gil. Sempre grato, Frutuoso.

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  2. Millôr é gênio.
    Muito bom, Frutuoso.
    Samuel Amaral

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