Na obra “Os irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, uma frase de Ivan expressa a consequência da inexistência de Deus para o comportamento ...

O que nos faz o que somos?

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Na obra “Os irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, uma frase de Ivan expressa a consequência da inexistência de Deus para o comportamento humano: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Dostoiévski era um cristão devoto e acreditava que a base da moralidade se assenta na crença de que há um ser superior que tudo governa, o que também é o fundamento metafísico da ética das grandes tradições espirituais monoteístas da humanidade: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

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Fiódor Dostoiévski
Corbis
Pensadores contemporâneos discordam de Dostoiévski e acreditam ser possível a elaboração de uma “ciência da moralidade”, inteiramente dissociada da crença em Deus. É o caso do filósofo e neurocientista Sam Harris, para quem basta investigar os estados mentais mensuráveis pela neurociência para se descobrir o que é necessário para o bem-estar e a felicidade do ser humano. É impossível negar que algumas pessoas que se apresentam como ateias demonstram elevados padrões de moralidade pessoal, enquanto outras, que se proclamam como teístas religiosas se conduzem de modo totalmente incoerente com a crença que dizem sustentar. C.S. Lewis, outro cristão autêntico e piedoso, expressou esta contradição em sua famosa frase: “de todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores."

A brutalidade e a estupidez já se aproveitaram das causas mais insuspeitas. Se o medieval Martelo das Feiticeiras emergiu do mundo religioso como um libelo de ignorância e violência contra toda a humanidade, em seu desprezo às mulheres, o
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Sergey Nechayev CC0
"Catecismo Revolucionário", do equivocado Sergey Nechayev, igualmente expressa o mais puro ódio irracional ao defender a adoção de quaisquer medidas antiéticas e amorais para garantir o sucesso da sua causa política, sustentando que o “revolucionário” deveria romper com todos os princípios morais e com quaisquer laços familiares e sociais, desprezar a vida humana, usar de manipulação e traição, promover a violência indiscriminada e buscar a destruição total da ordem existente, por todos os meios ao seu alcance. Tudo em nome da construção de uma “sociedade justa”.

Em seu alucinado fanatismo Nechayev dizia que “o revolucionário é um homem condenado antecipadamente, que não deve ter relações românticas, nem coisas ou seres amados, devendo se despojar de si para se concentrar em um único propósito: a revolução”, equivalendo-se em crueldade e potencial destrutivo à célebre exortação feita pelo legado papal Arnaud Amalric, durante o massacre de Beziers, que dizimou os cátaros na Cruzada Albigense, em 1209: “Mate todos, Deus reconhecerá os Seus".

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Bernardo Gui
Imago
A história demonstra que tantos indivíduos que se alegam ateus quanto os que se dizem teístas já foram capazes dos atos mais atrozes e insanos. A literatura também o ilustra. O inquisidor dominicano Bernardo Gui de “O Nome da Rosa, de Uberto Eco, não é menos cruel e impiedoso do que o revolucionário extremista Strelnikov, do "Doutor Zhivago" de Boris Pasternak.

Causas e cruzadas são muitas vezes desculpas para ambições pessoais. Usando-as como justificativas, indivíduos inescrupulosos se aproveitam delas apenas para fazer valer os seus próprios interesses, numa corrida desonesta, vil, desprezível e arrivista.

Diferentemente do mal, o bem não necessita de rótulos. Em Mateus 7:21, Jesus disse: “Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus”. Do mesmo modo, nem todos os que empunham alto as bandeiras mais louváveis estão realmente interessados nelas. Uma pessoa não precisa necessariamente defender uma ideologia ou professar uma religião específica para ser boa ou praticar o bem.

No final das contas, vale o que afirmou o filósofo Ralph Waldo Emerson:

"O que você faz fala tão alto que não consigo ouvir o que você diz".


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