Aquele mesmo pesadelo veio na noite de ontem. Aquele que não tem coragem de enfrentar. Mas, está sempre lá. E ele sabe como o pior pes...

O pior pesadelo não é o sonhado, e sim o que é lembrado

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Aquele mesmo pesadelo veio na noite de ontem. Aquele que não tem coragem de enfrentar. Mas, está sempre lá. E ele sabe como o pior pesadelo não é aquele que foi sonhado, mas aquele que foi lembrado. Sempre lembrado, à revelia de sua vontade. Uma corrupção de sua integridade mais íntima. E aquele era algo muito, muito doloroso. Como se, para ele, não tivesse passado o tempo. Todo o resto da vida seguiu em frente, mas aquele episódio, aquele episódio, não. Está como que congelado, em toda a sua crueldade. Então, levanta com dificuldade. Quem o visse, naquele momento, veria uma tristeza infinita no olhar, como uma supressão da vontade de seguir adiante.

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MS
A manhã segue como ontem. Ninguém nas ruas. Ninguém no trabalho. Nada na TV. Um mundo sem vida. Decide circular pela cidade. Ir na casa de seus poucos amigos. Um a um. Eles não estão lá. Vai na universidade. Nos hospitais. Nas praças. Uma busca inútil. Está em um mundo vazio de pessoas. Nem sequer um cão vadio. Um gato. Nada. O mundo estava esvaziado de vida. É incompreensível.

Então, em meio à perplexidade, tem uma ideia. Pessoas gostam de shoppings. Então decide ir a um. E vai. Incrível como consegue entrar, sem cobrança na guarita da entrada, que está escancarada. Consegue estacionar no melhor local, sem a disputa de vagas. Mesmo à luz da manhã, está iluminado pelas eternas luzes que fazem parte do espírito dos shoppings. O único detalhe é que as pessoas não estão ali. As lojas estão abertas, com os produtos ao alcance das mãos, mas… sem vendedores, nem compradores, ninguém simplesmente.

Impossível resistir, então. Aquela calça de grife tão cara, fora de seu orçamento. Ele pega com alguma cautela, espera que alguém apareça, vai pro vestuário, prova e decide que será aquela. Ninguém aparece. Faz o mesmo com algumas camisas. Ninguém aparece. Põe tudo numa sacola e sai. Olha em torno, ninguém. Rigorosamente ninguém. Então, pode aproveitar e pegar aquele tênis. Por que não? Pega um, pega dois. Da mesma forma. Está livre, pelo visto. Então,
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não resiste, vai nos perfumes. Compras e mais compras. Quer dizer, sacolas e mais sacolas. Está tomado pela fúria de consumir.

Vai a um supermercado. Está tudo ali, ao alcance da mão. Então, ali, diante dele, estavam os salames, os queijos, os presuntos, os parmas (ah! os parmas), os pães e tudo o mais que pegou, sem qualquer testemunha, apenas o reflexo de sua própria imagem nas garrafas de azeite e de vinhos. Vinhos que nunca ousou comprar.

Quando deixa o shopping, horas mais tarde, seu carro está abarrotado de produtos. Tudo o que cobiçou comprar um dia, e não pode, estava ali. Era uma festa. Então, imagina, se trabalho não há hoje, por alguma razão, melhor ir pra casa experimentar suas novas compras. Novamente, no trajeto, não havia um único motorista pelo caminho. Chega ao prédio, abre o portão. Chega ao apartamento, e, novamente, não há ninguém.

* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.

"O texto de Hélder Moura é forte, denso e carregado de curiosas referências literárias e musicais. Nele há também espaço para especulações filosóficas quanto ao sentido da vida e ao nosso propósito no mundo. O domínio narrativo gera expectativa sobre o desenvolvimento da trama, que envolve o leitor mesmo ante o absurdo das situações apresentadas - um absurdo que lembra Kafka mas se torna, digamos, decodificável com o auxílio da psicanálise. (Chico Viana)"


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