O professor René Étiemble, durante a década de 50, no século passado, tentou “higienizar” as letras francesas, numa luta que culminou ...

O gerúndio e a Lei

gerundio lingua portuguesa
O professor René Étiemble, durante a década de 50, no século passado, tentou “higienizar” as letras francesas, numa luta que culminou com a publicação do livro Parlez-vous franglais?, em 1964. O “moralista” da língua fez escola: posteriormente, na França, promulgou-se uma lei que proíbe expressões estrangeiras em placas e letreiros públicos, nas transmissões radiofônicas e televisivas, na publicidade e nas redações oficiais. Xenofobia inconsequente, porque o que caracteriza uma língua não é o léxico, mas a gramática. Se um dicionário fizesse a língua, o romeno seria eslavo, e o inglês faria parte do grupo das neolatinas. Se a influência inglesa no francês produzisse um artigo novo, um novo plural ou uma conjugação verbal diferente,
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então haveria motivos para preocupações. A ausência de artigo partitivo na propaganda francesa de Coca-cola (“Buvez Coca-cola”) assustou inutilmente os puristas: um caso isolado não mudou nem poderia mudar a sintaxe francesa, e o povo francês mantém intacto o emprego do partitivo, apesar da propaganda.

A tentativa de legislar sobre língua é bem antiga e sempre fracassou. Em Portugal, segundo Lindley Cintra (Sobre “formas de tratamento” na língua portuguesa), em 1597, Felipe II estabeleceu as formas de tratamento “para sossego de meus vassalloz”. Em 1739, D. João V fez o mesmo. Na Itália, em 1940, Mussolini tenta expulsar os estrangeirismos, para “purificar a língua”. No Brasil, no governo de Washington Luís, houve um decreto banindo o uso indevido de termos estrangeiros. A Revolução de 30 não o manteve. Em 1937, o Estado Novo proibiu nas escolas o ensino da língua estrangeira dos filhos de emigrantes. Em 1974, o general Euclides Quandt de Oliveira, ministro das Comunicações do general Geisel, tentou impor a norma culta, até mesmo nos diálogos das novelas, e banir o dialeto caipira das revistas em quadrinhos (Chico Bento, o personagem de Maurício de Sousa, foi ameaçado de morte, mas, estranhamente, o caipira Urtigão, das histórias Disney, foi poupado). Felizmente, o ministro desistiu e não levou avante o seu intento.

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Chico Bento ▪ Div./M. Sousa
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Urtigão ▪ Div./Disney

Há alguns anos, o deputado comunista Aldo Rebelo tentou impedir por lei, com ameaça de multa aos reincidentes, os que usassem nomes estrangeiros em dizeres públicos.

No dia 03.10.07, os jornais noticiaram o “fim do gerúndio”, por conta de uma lei absurda promulgada pelo governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ato que lembra a anedota de Valéry segundo a qual o marido, ao flagrar a infidelidade da esposa no sofá da sala, “resolveu” o problema removendo o sofá. Em lugar de ensinar os funcionários a usar o gerúndio, resolve-se o problema banindo-o da língua, como se a língua tivesse um só dono, coisa que, aliás, o Parlamento (leia-se: “Senado inoperante”) deve pensar, ao assinar um acordo ortográfico absurdo, sem ao menos examiná-lo.

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A revista Istoé nº 1980, ano 30, de 10.10.07, na p. 48, estampa o artigo “Demiti o gerúndio”, assinado por José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal. Em seu artigo, o governador argumenta que demitir o gerúndio era uma necessidade, porque os funcionários públicos recorriam a ele “para justificar a própria ineficiência”. Para ele, ditos como “estamos preparando” ou “estamos providenciando” (exemplos citados por ele como condenáveis, mas exemplos legítimos do uso do gerúndio que nada têm a ver com o gerundismo) caracterizariam “um crime contra a população” por representar uma “progressão indefinida”.

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Além do raciocínio indutivo que faz tabula rasa de todos os funcionários, considerados proteladores e ineficientes, José Roberto Arruda condena o gerúndio porque, para ele, o abuso do gerúndio é que seria responsável pelo emperramento da máquina administrativa. O gerúndio é que seria responsável pela burocracia, “enquanto doentes padecem nas filas dos hospitais”. Vale dizer: eliminando-se o gerúndio, os doentes terão atendimento, os funcionários exercerão suas funções com zelo, dedicação e eficiência. O gerundismo — como ele diz textualmente — é um crime contra a população.

Diz o governador que essa foi a maneira bem-humorada que encontrou para expressar sua impaciência com os atrasos no cumprimento das decisões. Segundo ele, o “decreto tem, quando menos, o mérito de abrir o debate sobre o tema. Além disso, mostra que o brasileiro mantém seu senso de humor.” Eliminar o gerúndio do serviço público não foi um modo “bem-humorado” de evitar atrasos, nem sei se o senso de humor de um brasileiro reside na supressão do gerúndio ou se algum decreto que elimine uma forma nominal de verbos promova algum debate sadio. Na verdade, o governador partiu de um grande equívoco.

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Não é o gerúndio que provoca o adiamento de um processo, a procrastinação de um serviço público ou a falta de atendimento médico. Ao “abolir” o gerúndio (em lugar de aconselhar que se evite o gerundismo), o governador mostrou não apenas desconhecimento da língua que fala, mas também confusão entre o mapa e seu território, entre o substantivo “boi” e o animal que leva esse nome, entre a palavra e o seu usuário. Na ótica simplista do sr. Arruda, eliminando-se o gerúndio, eliminam-se também a preguiça e a incompetência dos funcionários e burocratas da sua administração. Se a mesa está quebrada, basta eliminar a palavra “quebrado” do dicionário para que a mesa fique consertada; para que um motor de carro funcione sempre, basta eliminar a palavra “pane” dos dicionários. Para que um funcionário trabalhe, basta eliminar o gerúndio do seu vocabulário.

O sr. José Roberto Arruda descobriu a cura de todos os males!
linguagem neutra
José Augusto Carvalho, mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de vários livros sobre língua e linguística, entre os quais Gramática Superior da Língua Portuguesa e Estudos sobre o Pronome, ambos editados pela Thesaurus, de Brasília, em 2011 e 2016, respectivamente.


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