70 metros* Na perspectiva da ponte O pássaro solitário não volta. Bom sentar aqui... Gera um desvio do olhar, um tor...

O Estalo da Palavra (VIII)

jorge elias neto poesia capixaba
 
70 metros*
Na perspectiva da ponte O pássaro solitário não volta. Bom sentar aqui... Gera um desvio do olhar, um torcicolo súbito diante da emanação do absurdo. Ver do alto a evolução das águas: sem o murmúrio do bocejo das ondas, sem o grito ruidoso do rasgar do mar. Imagino os que trafegam às minhas costas ... Nas gaiolas de metal, guardam as intenções dos gestos. Que assim fiquem – distantes! Cada despedida vale pela nudez dos corpos; o íntimo dos olhos. E o momento não pede tal intimidade... (A Penha ergue-se sobre todas as coisas...) Minha mãe guardou meus cachos de anjo, cortados, abençoados... Mas os anjos são lívidos demais para serem humanos... (A eternidade é uma metáfora que já não me ilude.) Lá embaixo, no Oceano de pedra, reside o fim da angústia essencial, desmantela-se a Lei suprema. (Que homem ruidoso medrou minha carne?) Sou a coisa dispersa. A busca do indefinido. Muito me interessam os fósseis, extensos campos de poemas fósseis, desimpregnados de nomes... As palavras curtas; o anzol justo na boca da morte. Nesse beiral, ancoram-se cruzes, Destroem-se firmamentos. Sacia-se a fome de ossos dos Oceanos. Uma grande composição nua de gestos. Eis a porção relativa da insignificância humana. Mas, por ora, enxugue as lágrimas, leitor. Não se trata da vida do poeta. Por mais que insista a vida é mais irônica ainda que as palavras.
*70 metros é a altitude do vão central da Terceira Ponte que liga a cidade de Vitória à Vila Velha. Segundo informações, ocorrem suicídios neste local.


Penhor
Dezessete anos... Essa distância não se mede pelo quanto de terra que cobre teus restos, teus sonhos... Tua sombra não tem o gosto que meu paladar deseja. Não lambi o granito preto de teu túmulo, mas sinto o gosto de cera, que não me satisfaz – pois não é teu gosto. Por isso não te visito. Meus filhos não te visitam. Se eu morresse hoje e decidisse pelas cinzas, ficarias perdido na última alameda, à esquerda da figueira. Nem teu relógio de ouro me serve. Fosse de couro a pulseira, eu a lamberia e ficaria refestelado com o sal de teu suor.


Fórceps
De onde chega traz como souvenir ambiguidades. Na vagina da mãe a rasura do ser contorcido. Não se desprendeu jamais da incerteza de ter valido a pena. Envelhecido, quebrou costelas – destroços –, pariu a matriarca perdida ... E enfim se chega o determinado instante em que os dois se olham... Sabem-se diante do que lhes cabe como definitivo. É quando o silêncio resvala na hipocrisia.


Um facho de luz sobre a sombra
O que se dispersa além dos olhos diz do vacilo de não se ter sorvido o tempo
Estarei na última idade. Quando ruir a biblioteca não restará mais nada. Sem nenhum escrúpulo estarei a mijar nas calças todas as cervejas que pensei esquecidas. Aprenderei que não só a memória mas também a bexiga dos velhos despejam seus guardados... E, como ancião, terei em meus ouvidos um ruído agudo a dizer da morte ... (Esse crepúsculo atravessado na garganta.) Mas minha memória recente, sempre desatenta, privilegiará as flautas de antanho, olvidando a impertinência dos últimos segundos. Saberei que retive com primor uma certa dignidade burguesa, execrada nos versos. Em minha face retalhada será definitivo o rendado da ironia. Recearei de alguns saberes, sem dúvida. Mas um cristão tardio espero não ser. Lembrar: não fechar o ciclo previsível de tantos homens. Não me permitir, ao menos, essa contradição.


Dialética do desenlace
Para Flávio Viegas Amoreira Estamos sós. E a tristeza que invade os espaços íntimos não permite sobriedade. Desfazem-se os gestos para evitar a tortura de sentir-se interpretado. Quando se calar é um virar de costas...

Peixe morto
Rijo Seco Peixe morto Ondas... A sonoridade do estrondo desmente o silêncio dos olhos. Peixe morto Barbatanas de pau emaranhadas no sargaço O que resta compõe a realidade. Desfeito o furta-cor dos átomos que comungavam o mar em tuas escamas. Obscuro Não ser Peixe morto


Maria
E foi seguindo a viela que encontrei você, Maria... Não fosse tão arredia, não fosse assim – quieta – até compreenderia a sua boca aberta, a sua timidez úmida. E foi seguindo o dia que apreendi você, Maria ... Em minhas calças abertas, suas mãos buliam, vadias. Por que você ria, Maria... Por que você ria, Maria ... E foi seguindo a arrelia. Ninguém nos interrompia. Na boca você eu mordia, na boca você cuspia. Não entendo você, Maria ... Não entendo você, Maria ... E foi seguindo a folia. Na rua, o cordel seguia. Só eu me surpreendia. O gozo que escorria de sua boca imensa, de sua boca macia. Case comigo, Maria.... Case comigo, Maria ... E foi seguindo a orgia... A noite já se esvaía. De pé, já não me aguentava. No corpo, uma brisa fria e o suor se derramava. E este sangue, Maria? E este sangue, Maria? E foi seguindo a alegria. A imagem se dissipava. No chão, já me estendia, e Maria se derramava. Você é virgem, Maria? Será possível, Maria? E foi seguindo a agonia. Uma multidão imensa de mim se aproximava. Eu só queria Maria, que de mim se apartava. Vida vazia, Maria... Fique comigo, Maria! Fique comigo, Maria! Enfim entendi a vadia vida que se encerrava. Maria não era donzela; Maria nem sequer podia dizer-se minha amada. Maria não existia, foi-se na madrugada.

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