Os ossos da baleia A arte permite um legado sem tragédia I Minha terra é uma ilusão da linguagem. Tenho de meu esse ra...

O Estalo da Palavra (VI)

poesia capixaba jorge elias neto
 
Os ossos da baleia
A arte permite um legado sem tragédia
I Minha terra é uma ilusão da linguagem. Tenho de meu esse rastilho de palavras que pressinto atadas aos calcanhares. Se o desfaço, perde-se o encantamento das vivências cerzidas. Sei que as mãos ensaiam obscenidades entre dois espelhos. Quero mesmo criar algumas reentrâncias na estrutura dos olhares. Mas olhos extraviados não ardem no lugar-comum em que me perco... II Os espaços se desdobram, esticam-se oferecidos; e vão se alinhavando, precisos, retocando com lembranças a reta da vida. III Dou conta de minhas cicatrizes; e são bem humanas: com cheiro de menstruação e defunto. Para os crentes, desejo o reino dos Céus. Para mim, a realidade. Sou um desencontrado; não me cabem subterfúgios. IV Com a língua percorro as bordas adocicadas do infinito (limão na taça com marguerita). Diz o psicanalista: É necessária a subjetivação da morte (Os antigos fechavam com açúcar a borda das feridas). V Se olho assim, olhar meio cerrado, é por ser minha a culpa do peito rasgado. Essa substância que me escorre, lambo-a entre os dedos, e a distribuo, posto que é farta. VI Para compartilhar a loucura, há que se guardar em segredo a penúria dos instintos que avassalam a alma. Ela atordoa, pois é inventiva demais... VII Na manhã do despertar do espírito, assim, obsequioso, fui entrando nas casas. E todos desviaram de mim o olhar. Surgi lento diante dos portais, quando os primeiros raios oblíquos da manhã não ousavam passar do peitoril das janelas. E a ausência de luz no interior das moradas fez maior o impacto daquele que se anunciava. VIII Raios de sol escorriam-me pela face onde já adormecera o orvalho que trazia da madrugada. De súbito, toda a luz se esfacelou. Um olhar sem temor, fez calar os poucos que ensaiaram suas objeções à minha presença, assim, tão cedo, e sem convite. IX
A sobrevivência de certos espíritos depende da discrição dos gestos.
Por ter deixado de acreditar na cautela do silêncio, fui derramando a língua sobre os móveis da sala onde os moradores se mantinham sentados. As palavras me enchiam a boca; e, se as tentasse calar, seria possível ver as protuberâncias que a fala contida criava ao serpentear em meu rosto. Sentia-se o arrebatamento do grito arremessado. X
Dormir é distrair-se do mundo Jorge Luiz Borges
- Onde não estive custa-me adivinhar trevas. A imprecisão do escuro não reveste os meus sonhos. Sou um companheiro da morte. XI - É necessário não prescindir da loucura. Ser, quem sabe, um contrapeso à tensão da corda. Quem estabelece o limite, além de nós mesmos? Se o absoluto sentido foi encomendado nas véspera da chegada do Verbo, passou batido por minhas mãos e espalhou-se ruidoso pelos cantos do mundo. XII - Certa é a incerteza. É a dúvida uma potência guardada a sete chaves. E o que se pede é a aniquilação do momento, da pungência do instante, do renascimento à cada aurora. XIII - Resta um agora diluído em cada desejo. Nada basta aos nômades nas areias das praias. (estão sempre paranoicos com a perseguição do crepúsculo dominical.) Alguns querem ser crianças para picotar os limites. Outros urgem pelo calabouço. XIV Uns tinham o silêncio como adorno - sinal de impossibilidade de aproximação. Os outros desmentiam tudo, inclusive a malícia da boca cerrada. XV
As têmporas fervilham na iminência do instante.
Todo calor disperso coagulou, condensou, no que se costuma chamar alma. (Um ar quente, de paradoxal leveza, pairava impenetrável aos bons pensamentos.) Nos dias quentes certas idéias são indissolúveis... XVI Olhos extraviados não ardem no lugar-comum em que me perco... Falei da irrelevância relativa da existência. (As sombras, somadas, ocuparam todo lugar no espelho.) Custou-me entender que não se deve revirar prateleiras alheias, desmantelar espaços, desarranjar a ordem estabelecida para a vida. Mas também, que besteira!... Não se compartilha o fundilho rasgado para morder o rabo! XVII Para tudo existe um peso, uma medida e uma visão distorcida. XVIII Olhos extraviados não ardem no lugar-comum em que me perco... E veio a tempestade... As nuvens escorrem na janela arrastando a sombra cansada de meu corpo. Distante dos seres obtusos, com seus relógios na testa, decidi partir com o rastejante silêncio das últimas águas. Logo estarei distante, para não sentir o impacto do adeus. XIX Meu punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. XX Podia terminar assim - recuado - o eu dentro de mim. Licenciosa... a mosca verde já contorna o corpo fendido. Nada se justifica no corpo perdido. Nem mesmo a morte. Vejo minha terra Com olhar de bumerangue. Resolvi ficar!... Descobri o propósito dos cantos empoeirados. XXI Entre uma lufada e outra do vento os dias fizeram-se esquecer... E o necessário descaso entorpeceu o ceifador de palavras. O tempo mostrou-se tolerante com minha impaciência. XXII Não se ruminam os sonhos. Eles se costuram e crescem... XXIII Todas as tentações deixadas no passado - e insistiram em benzer minhas cinzas com água benta. Desconhecem que após a morte não brotam incertezas. Foi a última chance de jogar meu corpo no lugar-comum das dúvidas. XXIV Trago interrompidas as melhores frases. As paredes ignoram os versos de festim esparramados no reboco. Aguardam o amálgama do Sol que, de tão alentado, não chega. XXV Eis a introdução não escrita. Alijada da obra. Pensá-la virou um hábito de reinício; pausa no entreposto das suposições. Passado? Mas os tomates podres são de um vermelho tão sincero... XXVI Dentre todos os vermelhos com que deparo em frente à vastidão das janelas abertas, permanece o vermelho liso sobre o qual deslizo por esse entardecer. XXVII Vou sair na noite e me travestir de amenidades. Desenhar na névoa elefantes com trombas sonoras, zebras com listras de estrelas, casais gozando em seus fuscas falantes, de faróis de neblina, iludindo o passeio dos guaiamus. Sentarei a meia-distância de lugar algum e gritarei seu nome em vão. E então amanhecerá, e me despedirei da aurora.

* Poemas do livro Os ossos da baleia (2013)

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  1. José Augusto Carvalho9/7/24 09:19

    É sempre bom ler e reler os poemas de Jorge Elias de quem sou fã há muitos anos e cuja ascensão poética acompanhei sempre com admiração. Jorge Elias é um grande Poeta, com P maiúsculo

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  2. Anônimo9/7/24 20:34

    Se o eminente professor José Augusto Carvalho falou, quem há de negar. Um grande Poeta que nos encanta mesmo depois de n leituras.

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