A história da Inconfidência Mineira foi contada para os brasileiros, durante mais de 180 anos, quase como uma lenda. Somente entre 1976 e 1982, foi publicada a terceira e última edição dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, editada por Tarquínio José Barbosa de Oliveira e Herculano Gomes Mathias, com um total de três mil páginas dividida entre 10 volumes, patrocinada pelo governo de Minas Gerais. Embora em 1873, Joaquim Norberto de Souza e Silva, ministro de Dom Pedro II, tenha escrito História da Conjuração Mineira, a primeira obra realizada em função dos Autos da Devassa. Outro texto importantíssimo foi escrito pelo historiador inglês Kenneth Maxwell, traduzido para o português como A devassa da devassa (Conflicts and Conspiracies).
Recentemente dois livros bastante esclarecedores foram publicados. O primeiro, de autoria do jornalista mineiro Roberto Wagner de Almeida: Entre a Cruz e a Espada – A saga do valente e devasso Padre Rolim. A ênfase nesse livro é o Padre Rolim, personagem desconhecido pela grande maioria dos estudantes do curso fundamental, quando se trata do tema Joaquim José da Silva Xavier. O segundo, escrito pelo colunista de O Globo, Pedro Doria: 1789, abrangendo os principais aspectos dessa conjuração, seus costumes e o papel de Tiradentes durante a Inconfidência Mineira.
Em 1788, a crescente falta de alternativas econômicas, decorrentes de extorsivos impostos cobrados por Portugal aos exploradores de minérios, levaria a elite de Minas Gerais a considerar a possibilidade de um movimento revolucionário. Os boatos sobre a “derrama” produziram o elemento faltante à decisão. No Brasil Colônia, a derrama era um dispositivo fiscal aplicado em Minas Gerais a fim de assegurar o teto de cem arrobas anuais na arrecadação do quinto. O quinto era a retenção de 20% do ouro em pó ou folhetas que eram direcionadas diretamente à Coroa Portuguesa. Os membros da elite tornaram-se conspiradores. Em pouco tempo traçaram plano voltado a desencadear um movimento de independência de Portugal. A revolta deveria coincidir com a “derrama” imposta pelo Governador Cunha Meneses, odiado por ficar com o excedente da arrecadação.
Na condição de grandes proprietários e membros influentes da sociedade, passaram a juntar recursos e a aliciar adeptos. Mas, antes do dia marcado, um dos conspiradores, Joaquim Silvério dos Reis, traiu os amigos, permitindo a reação imediata do governo. Os inconfidentes foram presos, torturados e trancafiados em um forte no Rio de Janeiro.
Entretanto, há um personagem fundamental na Inconfidência Mineira não muito considerado pela História e pouco divulgado: O padre José da Silva e Oliveira Rolim (1747-1835). Teria sido ele quem colocou pólvora onde só havia poesia. Responsável por transmudar um simples sonho de liberdade em planos efetivos de tomada do poder pelas armas. Foi o último a ser preso, tendo logrado romper dois cercos de militares que tentavam aprisioná-lo. O primeiro, atravessou disfarçado de soldado. O segundo, enfrentou à bala. Ocultou-se nas matas por vários meses, levando ao desespero as autoridades portuguesas, que o reconheciam como o mais perigoso dos conjurados. De todos os inconfidentes foi o único de quem se tem fiel descrição dos pés à cabeça, pois foi preciso divulgar um edital com detalhes de sua aparência, com promessa de prêmio a quem o localizasse. Preso, foi quem mais resistiu aos interrogatórios. Ninguém foi mais interrogado que ele: quinze vezes. Enquanto Tiradentes, que foi o que mais se aproximou, sofreu 11 interrogatórios. Tiradentes chegou a denunciá-lo em uma acareação2.
O Padre José da Silva e Oliveira Rolim integrava uma das famílias mais ricas do Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, em Minas Gerais. Seu pai, embora brasileiro, tinha sido nomeado primeiro e principal caixa-administrador da poderosa Junta Administrativa, um quase governo autônomo dentro da Capitania.
Natural do Arraial do Tijuco, o padre Rolim era filho mais velho do sargento-mor José da Silva e Oliveira Rolim e de dona Anna Joaquina da Rosa. O casal teve quatro filhos, todos varões: José, o mais velho; seguido de Carlos, que depois de diplomar-se em Coimbra também se tornaria sacerdote; viriam depois, Plácido e o caçula Alberto. Entre o mais velho e o mais novo, diferença de apenas seis anos. Além dos quatro filhos de sangue, o sargento-mor Rolim, poderoso primeiro caixa da Intendência de Diamantes (fazia parte de uma elite que rapidamente dominou o negócio de diamantes e enriqueceu), resolveu criar como filha uma menina mulata que teve inicialmente como escrava, alforriando-a mais tarde para lhe conceder a liberdade e lhe emprestar o próprio nome (Silva). Batizada Francisca da Silva, a sensualíssima mulata que se fez conhecida como Chica da Silva viria a se tornar verdadeira Rainha do Tijuco, amante de homens importantes, sobretudo do magnata João Fernandes de Oliveira, com quem viveu maritalmente e a quem deu quatro filhos e nove filhas, uma das quais, Quitéria Rita, que se tornaria o grande amor do Padre Rolim3.
Cursou o seminário menor de Mariana, onde teve como um dos professores o cônego Luís Vieira da Silva, seu futuro companheiro de Conjuração. Posteriormente cursou o seminário maior em São Paulo, onde se ordenou sacerdote. No período em que cursou o seminário maior em São Paulo o jovem Rolim envolveu-se em tantas e tamanhas farras com mulheres de famílias paulistanas, que o governador Lobo de Saldanha o expulsou da Capitania. Está tudo documentado em correspondência do capitão-general Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador da Capitania de São Paulo, que relatam as noitadas do seminarista José da Silva e Oliveira Rolim4.
O brasilianista inglês Kenneth Maxwell5, professor de História da Universidade Colúmbia nos Estados Unidos, considera pejorativamente o padre Rolim pela prática do contrabando de diamantes, além de atribuir-lhe a importação ilegal de escravos. É importante considerar que o ato de contrabandear diamantes naquela época era também uma forma de lutar contra o despotismo dos colonizadores. O padre Rolim era apenas um entre muitos que, em todo o Distrito Diamantino, desviavam diamantes da rota oficial de Lisboa para a via clandestina de Amsterdã. E desse contrabando participavam, inclusive, muitas das autoridades portuguesas em serviço no Brasil.
O padre Rolim não tinha um pingo de caráter. Aos 39 anos era um homem alto e magro, o rosto comprido marcado por uma cicatriz na face direita. Barba castanha, alguns fios brancos, testa alta, sobrancelhas arqueadas, lábios grossos, grande. Os dentes amarelados, eram tortos, “cavalgados uns sobre os outros”, descreveria anos depois alguém que o conheceu6.
Sobre o padre Rolim, Cecília Meireles, escreveu7:
De Vila Rica ao Tejuco,
lá vai carta, lá vem carta.
Prendem o padre ou não prendem?
Dificílima caçada!
Uns dizem que já vai longe,
pelo alto da serra brava;
outros, que sai à noite,
fugido de casa em casa.
Se perguntarem por que o prendem,
todos dão resposta vaga:
por ter arrombado a mesa
de um juiz, em certa devassa;
por extravio de pedras;
por causa de uma mulata;
por causa de uma donzela;
por uma mulher casada.
De Vila Rica ao Tejuco,
parte carta, volta carta...
- Algumas, não chegam nunca;
nenhuma é bastante clara...
Soldados surdos e cegos,
enfim, cercaram-lhe a casa.
Pulando cercas e muros,
já bem longe o padre andava.
Nos seus colchões remexidos,
não se pôde encontrar nada,
que escondera as copias todas
- em que mesa? armário? caixa?
teto? parede? alicerce?
com que amigo? com que amada?
De Vila Rica ao Tejuco,
sobe carta, desce carta.
(O padre na sua choça,
construída dentro da mata,
deixando passar o tempo,
deixando crescer a barba,
separado deste mundo
pela taipa de taquara!)
Não há rancho que o proteja,
quando é tempo de desgraça.
Ao que mais foge da sorte,
sempre algum soldado o agarra:
lá vai pela estrada afora,
lá vai, pela íngreme estrada,
o padre Rolim, que sempre
tivera vida bizarra.
Sete pecados consigo
sorridente carregava.
Se setenta e sete houvera,
do mesmo modo os levara.
Por escândalos de amores,
sacerdote se ordenara.
Só Deus sabia os limites
entre seu corpo e sua alma!
Era um padre de aventuras
que, tendo ou não tendo barba,
conforme o que houvesse em frente,
mudava sempre de cara.
Padre de maçonaria,
que sonhava e conspirava,
cuja história fabulosa
corria cada comarca...
Padre amável e guloso
que ao louro poeta Gonzaga
mandava caixas do Serro
com docinho de mangaba…
Foi beneficiado da comutação de morte na forca por degredo perpétuo, a exemplo de todos os demais sentenciados com pena capital, à exceção de Tiradentes, que além de enforcado foi esquartejado. Embarcou para Portugal na fragata “Golfinho”, em 24 de junho de 1792. Graças ao prestígio da Santa Sé, os prelados não eram degredados para a África, e sim, levados a Lisboa, onde a Rainha D. Maria I decidiria o local onde seriam mantidos presos pelo resto da vida. Juntamente com os demais sacerdotes conjurados, o padre Rolim foi mandado em 6 de julho para cumprir prisão perpétua no Forte de São Julião da Barra, em Lisboa, tendo ali permanecido por quatro anos. Em 1796 veio a ser transferido para o claustro do Mosteiro de São Bento da Saúde, na capital lusitana. Fato extraordinário na vida do Padre Rolim foi ter sido companheiro de cela durante um mês e sete dias do célebre e mais importante poeta português do século XVIII, Bocage (Manuel Maria Barbosa du Bocage).
No ano de 1802, o general Jean Lannes – futuro marechal e Duque de Montebello – embaixador da França de Napoleão Bonaparte em Lisboa, resolveu interceder a favor do Padre Rolim. Era reconhecido como um dos mais hábeis comandantes napoleônicos e é descrito como um homem valente, impetuoso, de temperamento difícil. Não se sabe até hoje o que motivara aquele gesto do famoso general. Dom João VI concedeu-lhe o perdão. Sem tal ajuda providencial, o Padre Rolim teria permanecido no cárcere até a morte. Recebeu seu novo passaporte, voltou para o Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, recuperou parte dos seus bens que, por estratégia, transferira do seu pai para os seus irmãos.
Durante a proclamação da Independência do Brasil, em 1822, ainda estava de pé, alquebrado, mas vivo, com a resistência de sempre. Viveria ainda 13 anos no país livre, para só morrer em 21 de setembro de 1835, aos 88 anos de idade. Foi enterrado na Igreja do Carmo, recebendo a sepultura N.º 2. Consta que teria sido vestido, para a cerimônia fúnebre, com paramentos maçônicos. Segundo o jornalista Roberto Wagner de Almeida, não há como localizar os seus despojos. Supõe-se que a sepultura número 2 esteja aos pés do altar. Segundo o jornalista:
[...] nada existe a demarcá-lo no chão de tábuas estreitas, que certamente não remontam ao tempo em que, na rua da frente, desfilava altivo em seu cavalo castanho, sobre uma sela de veludo azul, um sacerdote valente, amante de mulheres, diamantes e aventuras [...]. Sua casa ainda está felizmente preservada e é hoje o Museu do Diamante em Diamantina. Segundo o citado autor, [...] é desolador saber que o Padre Rolim, que teve um papel de destaque na Conjuração Mineira, Diamantina deveria se preocupar em erguer o monumento que lhe deve há mais de 200 anos [...].