O leitor sabe, tem livros mais difíceis de ler que outros. Exemplos: Ulisses, de James Joyce, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Há mais, claro, mas estes dois são reconhecidos desafios, face as especificidades formais, sem falar na extensão da obra, por si só capaz de desanimar muita gente. A montanha mágica, de Thomas Mann, menos pela complexidade da linguagem e mais pelas centenas de páginas, também costuma espantar leitores.
O próprio Dom Quixote, de Cervantes, e Guerra e Paz, de Tolstói, ou Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, também se alinham nessa estante espinhosa, por razões várias. E assim por diante.
Há dois tipos de leitor: um, que lê por prazer, por pura fruição do texto, sem maiores pretensões intelectuais; outro, que lê como quem estuda, procurando teorizar sobre a obra, enquadrando-a nos marcos da teoria literária e fazendo-lhe a crítica menos superficial. O primeiro, vê-se, é o chamado “leitor comum”; o segundo, é o leitor especializado, que não raro lê mais por obrigação profissional que por simples deleite. Eu e provavelmente você, caro leitor, estamos no primeiro grupo, o da maioria, dos simples mortais, consumidores descompromissados da literatura.
Descompromissados. Esta palavra diz tudo. Pois há realmente descompromisso por parte do “leitor comum”. Descompromisso no bom sentido de decodificar criticamente o livro lido e descompromisso de até mesmo ler o livro, a despeito de sua eventual importância literária. Porque, como dito, a obrigação desse leitor anônimo, responsável em última instância pela sobrevivência de escritores e de livrarias, é com sua satisfação, seu gosto pessoal, seguindo o lema de Montaigne, inscrito na entrada da biblioteca de seu castelo: “Só faço o que me dá alegria”.
Essa alegria não significa, óbvio, preferência exclusiva por livros fáceis, de comprovada carência de qualidade literária. Não. Mas expressa a deliberada opção do “leitor comum” por obras ao alcance de suas possibilidades individuais, sejam elas de ordem puramente intelectiva, sejam da ordem do gozo estético puro e simples, sem comprometimento com quaisquer teorizações. Isso lhe dá, por exemplo, liberdade para ler sem culpa e com prazer qualquer best-seller tipo O Código Da Vinci. Ou, num patamar mais alto, os livros policiais de Simenon.
Essa, talvez, uma das vantagens do “leitor comum” sobre o leitor especializado. Este, coitado, não degusta, mas analisa. É como o conhecedor de vinhos que bebe não perseguindo a alegria que vem da bebida e da companhia, mas identificando uvas, safras, regiões produtoras e outras coisas mais, informações absolutamente desnecessárias para quem quer apenas desfrutar o néctar e o instante.
Mario Vargas Llosa costuma ler romances como um “leitor comum”. Sobre isso ele falou numa entrevista ao jornalista Ricardo Setti: “Quisera que meus livros fossem lidos como eu li os romances de que gosto. Os romances que me fascinaram, mais do que entrar pela inteligência, por meio do puro intelecto, da pura razão, literalmente me enfeitiçaram, quer dizer, se converteram em histórias que de certa forma destruíram toda capacidade crítica em mim”.
Virgínia Woolf, por sua vez, escreveu um conhecido ensaio sobre o “leitor comum”, essa figura sem rosto e sem nome que participa do mundo literário como uma espécie de juiz derradeiro do momento presente e da posteridade dos livros e autores. No fim, de fato talvez seja ele, o “leitor comum”, mais importante que todos os críticos e teóricos da literatura, sem desmerecê-los, claro, pois têm o seu lugar e o seu papel no universo cultural. Mas voltemos aos livros “difíceis”.
Tem um que me desafia há tempos. Não por maior complexidade intrínseca da trama ou por experimentalismos formais, pois não é o caso, mas pelo rebuscado estilo do autor, seus longos parágrafos descritivos, capazes de cansar rapidamente o leitor desprevenido. É sem dúvida uma narrativa de fôlego, muito fôlego. Uma narrativa para maratonistas e não para corredores de 100 metros sem obstáculos. Refiro-me à recherche (À procura do tempo perdido) de Marcel Proust, monumento de sete volumes intimidativos, certamente uma obra boa para se levar para uma ilha deserta ou lugar parecido, pois na agitação do cotidiano não é fácil. Enquanto vou percorrendo-a devagarzinho, compenso-me lendo sobre ela e seu autor, ou seja, vou cercando-a pelas beiradas, como quem come papa quente.
Proust é um personagem muito interessante. Por si só, é capaz de atrair o interesse do leitor para a sua grande obra. Sua presença como autor importante foi algo inesperado para os seus contemporâneos, pois ele era visto apenas como um dândi, um frívolo frequentador de salões aristocráticos na Paris de fins do século XIX e começos do século XX. Um homem de “sociedade”, como se diz, de quem não se podia legitimamente esperar grande coisa, em termos de realizações sérias. Esta, aliás, a razão que levou André Gide a recusar a publicação do primeiro volume da recherche, recusa de que se arrependeu pelo resto da vida, após se revelar o valor literário do que Proust escrevera. É realmente um enigma da vida essa transformação do “socialite” no grande escritor que soube magistralmente transpor para o papel as figuras humanas e o cenário social de seu tempo e de seu meio, criando um dos clássicos das letras ocidentais.
Voluntariamente recolhido ao seu quarto de asmático profissional, Proust dedicou seus últimos anos à construção paciente de sua pirâmide. Uma pirâmide que só um arguto observador e um fino psicólogo poderia erguer. Pois a recherche é isto: um extenso – e profundo - painel humano e social escrito com a pena de um verdadeiro – e insuspeitado - artista da palavra.
Houve época em que sofria por conta de minhas “deficiências” como leitor. As ausências de certas obras no meu currículo me humilhavam, mesmo que discretamente. Depois relaxei. Compreendi que o “leitor comum” não precisa ter lido tudo – e isso me serenou. A partir daí, só leio o que me dá alegria.
Com relação à recherche, animou-me recentemente o aparecimento da tradução feita por Rosa Freire d’Aguiar e Mário Sérgio Conti para a editora Companhia das Letras. É uma edição feita com capricho e muito arejada em termos de atualização do texto para o leitor dos nossos dias. Não perco, pois, a esperança. Um dia terminarei de ler Proust.